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quarta-feira, 4 de junho de 2025

RESENHA: Memórias Póstumas de Brás Cubas (de Machado de Assis)


Resenha de:

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

DE MACHADO DE ASSIS


4 de junho de 2025

Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia

Arte de: Eduardo Schloesser.

 

    Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado em forma de livro no ano de 1881, é a primeira parte da chamada Trilogia Realista, escrita por Machado de Assis, antecedendo Quincas Borba (1892) e Dom Casmurro (1900). Trata-se de um dos maiores clássicos da literatura brasileira, quiçá o maior, tendo iniciado o Realismo no Brasil, com formas que só seriam melhores assimiladas décadas depois, durante o Modernismo. Dividida em 160 pequenos capítulos, publicados originalmente em periódicos, entre os meses de março e dezembro de 1880, a obra foi traduzida para vários idiomas e adaptada para diversas mídias.

    O título faz alusão ao protagonista, Brás Cubas, que conta suas desventuras, projetos e romances, do nascimento à morte, em primeira pessoa, em um pós-vida não especificado. A possibilidade de se autobiografar após a morte nunca é explicada, sendo basilar na narrativa. É um formato inovador, onde o narrador interage com o leitor, com piadas e reflexões sinceras, quebrando a chamada “quarta parede” da ficção, sendo que o próprio é também protagonista da história. Brás, no livro, comenta que se inspirou no “estilo livre” de Laurence Sterne e Xavier de Maistre, “com a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, isto é, com uma mescla de humor (na superfície) e angústia (normalmente, ocultada no subtexto).

    Machado de Assis é, segundo muitos estudiosos, o maior dos escritores brasileiros. De família humilde, seu pai foi descendente de escravizados e pintor de paredes; sua mãe, portuguesa. A família, mesmo pobre, era agregada de uma viúva rica, que amadrinhou Machado, possibilitando que mantivessem uma vida digna. Nasceu em 1839, na então capital do Império, o Rio de Janeiro, onde se versou nos grandes clássicos literários e filosóficos, além de aprender variados idiomas, tornando-se um homem de vastíssima cultura, sempre referenciada em suas obras. Desde cedo, foi ganhando admiração, por seus poemas, contos, romances, peças e crônicas jornalísticas. Trabalhou em cargos públicos e cofundou a Academia Brasileira de Letras, onde se tornou o primeiro presidente da instituição. Sua obra literária costuma ser dividida em duas fases, uma Romântica e uma, posterior, Realista. A fase Romântica é marcada por uma “fé ingênua”, otimista, uma crença nas virtudes humanas. A segunda fase, Realista, iniciada em Memórias Póstumas, vai por um caminho mais lúcido, irônico e melancólico, sendo baseada no pessimismo do filósofo alemão Schopenhauer. Machado sempre teve a saúde muito frágil, tendo (acredita-se) sofrido de epilepsia, gagueira e cegueira parcial. Faleceu em 1908, já consagrado pelo público e pela crítica, pouco tempo depois da morte de Carolina, sua esposa por mais de três décadas.

    O contexto da história se dá durante meados do século XIX, enquanto o Brasil foi, primeiramente, colônia portuguesa e, depois, Império. É um mundo muito diferente do nosso, com a escravatura integrando o cotidiano da nação. A família Cubas, de nosso protagonista, não precisava trabalhar efetivamente, sendo parte da aristocracia carioca. Para legitimar suas vidas, buscavam certos status sociais, amparando-se nas instituições, como o casamento e cargos públicos de mínimo esforço.

Brás Cubas, interpretado por Reginaldo Faria (à esquerda) e Petrônio Gontijo (à direita)


    No que concerne à linguagem machadiana, o livro é escrito de forma rebuscada, com referências obscuras e palavreado próprio à época (o que pode causar dificuldade nos leitores atuais; por isso, recomenda-se uma edição com notas de rodapé). É repleto de humor, sutil ou escancarado. Porém, quando quer, não deixa de ser dramático e angustiante. Na obra, que reflete a realidade, tudo é um jogo de máscaras, um teatro, onde as peças agem inconscientemente movidas por seus impulsos, desejos profundos, enquanto ostentam aparências que sejam bem-vistas pela opinião pública, como se puxadas para dois lados opostos, o da Natureza e o da Sociedade. Somente em morte, Brás pode ser totalmente franco, pois em vida acreditava precisar atender às mais diversas coerções sociais. Vista “de fora”, isto é, da morte, a vida é enfim compreendida: desejamos sempre e, por isso, sofremos sempre. E Brás desejou muitas coisas, como cargos, casamentos e a glória perpétua de seu nome (por meio da invenção de um emplasto milagroso). Em vida, não conquistou nada muito relevante, pelo próprio esforço: até mesmo sua formação em Direito foi apenas de fachada, para ostentar o título, sem, no entanto, ter aprendido ou exercido a profissão; na breve carreira como deputado, lutou pela redução das barretinas (chapéus) dos soldados, uma reivindicação inútil. Fracassou, de certa forma, em todos seus romances: a mulher que realmente o amava, preferiu o matrimônio de outro; outra, não possuía o status que lhe agradava; outra, morreu cedo; e outra, só desejava seu dinheiro. É de um pessimismo brutal, onde a existência é uma sucessão de desgraças incorrigíveis. Por isso, ao fim, Brás se alegra de, apesar de tudo, não ter tido filhos, deixando de legar o vazio da miséria humana.

    O humanitismo de Quincas Borba é o contraponto à realidade da trama, usado como chacota, sendo otimista ao extremo, como o Dr. Pangloss, de Cândido ou o Otimismo, personagem de Voltaire, que acreditava tudo no mundo ser bom (e a desgraça, uma ilusão). Se tudo for uma espécie de imanação de Deus (ou Humanitas, como defende Quincas), não há espaço para a crença no sofrimento. A única via ruim, nesse caso, é não-nascer. Se duas tribos famintas guerreiam por um punhado de batatas, sendo apenas um processo natural legítimo e comum dentro do darwinismo, não há razão para que nos compadeçamos com os derrotados, haja vista que todos fazem parte da mesma (e sempre boa) substância, como Machado explicita no livro seguinte, Quincas Borba, de 1892.

    Brás Cubas é o personagem principal, sendo narrador (no presente) e protagonista (no passado). Ele é guiado pelas paixões e pelas necessidades institucionais, das aparências. Sabina, esposa de Cotrim, é sua irmã e também deseja que Brás zele pela boa reputação, aconselhando-o a se casar. Os pares românticos do personagem foram quatro: primeiramente, Marcela, uma cortesã que trocava seus afetos por joias; Eugênia, a “flor da moita”, que até lhe agradava, mas por ser manca e pobre (algo malvisto socialmente) acabou não sendo escolhida; Eulália, mais conhecida como Nhã-Loló, que morreu jovem, antes de concretizar a união com Brás; e Virgília, seu grande amor, que optou por se casar com Lobo Neves, devido seu maior prestígio na sociedade, envolvendo-se com Brás secretamente, em adultério. Quincas Borba é outro personagem importante, aparecendo primeiramente como um excêntrico mendigo, mas ressurgindo rico e filósofo, crente no seu humanitismo. Há, ainda, Dona Plácida, uma velha humilde que encoberta o romance proibido de Brás e Virgília, e outros coadjuvantes esporádicos.

    Concluindo, há muito o que se aprender com a obra, levando-nos por questionamentos existenciais: qual o sentido da vida? Em que medida nossos impulsos governam nossas ações? E em que medida tomamos decisões com base nas expectativas das opiniões públicas, por mera formalidade ou aparência? Por que desejamos o que desejamos? Tudo isso é destrinchado, em muitas camadas, no romance, com fina ironia, humor e, claro, a construção de um dos maiores gênios da Língua Portuguesa.


Lobo Neves, por Otávio Müller (à esquerda); Quincas Borba, por Marcos Caruso (à direita)


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Em seguida, meu resumo cronológico da história, com spoilers:


Brás Cubas, que assina a autobiografia, escreve a dedicatória mais famosa da ficção brasileira: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. Depois, no prefácio, explica seu estilo e suas influências, para enfim começar a história. Morto em 1869, aos 64 anos, numa chácara particular, solteiro e possuindo 300 contos, muito rico, o defunto-autor começa pelo fim, descrevendo seu funeral e sua causa mortis, uma pneumonia contraída enquanto criava malsucedidamente o emplasto Brás Cubas, um medicamento anti-hipocondríaco milagroso que, segundo o próprio, dar-lhe-ia a glória eterna.

Pouco antes de falecer, recebeu a visita de um mulher misteriosa e chorosa, Virgília, e delirou que havia se transfigurado na Suma Teológica, de Tomás de Aquino; depois, novamente humano, foi levado por um hipopótamo para a “origem dos séculos”, onde tudo era gelo e neve. Lá, encontrou uma mulher imensa, que lhe disse: “Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga”, com quem travou um diálogo filosófico. Ao fim do delírio, a Natureza lhe mostrou através de um nevoeiro o passar dos séculos, a História humana, com suas guerras, ascensões e quedas de impérios.

Nasceu em 1805 em uma família da elite carioca. Deveras travesso, gostava de montar o escravo da família, Prudêncio, e durante os tempos de escola foi amigo, do também endiabrado, Quincas Borba, que adorava pôr baratas mortas nas coisas do professor. Em certa ocasião, Brás dedurou para todos um beijo ilícito do velho glosador, dr. Villaça, em Dona Eusébia, ocorrido atrás da moita – o romance secreto acaba resultando, no futuro, em uma filha, Eugênia, a “flor da moita”.

Aos dezessete anos, Brás se apaixona por Marcela, uma prostituta espanhola de luxo, cujo amor perdurou por “quinze meses e onze contos de réis”. Furioso com a fortuna gasta, o pai de Brás, sr. Bento Cubas, enviou o filho para Coimbra, Portugal, onde veio a se formar em Direito e viveu desregrado, na boemia. Voltou ao Rio na ocasião do leito de morte de sua mãe, fato que o abalou profundamente e o fez se refugiar por dias num aposento mais afastado, na Barra da Tijuca. Seu pai lhe ofereceu dois projetos: uma candidatura a deputado e um casamento, com Virgília, filha do Conselheiro Dutra, dizendo-lhe sobre as obrigações sociais. Enquanto isso, visitou Dona Eusébia, sua vizinha na Tijuca, a mesma que constrangera na infância, e conheceu sua filha, Eugênia, a “flor da moita”, com quem se viu encantado, mas logo abandonou, devido o status baixo da garota e um defeito de nascença, sendo manca de uma perna. “Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”, indagava ele.


Marcela, por Sônia Braga (à esquerda); Eugênia, por Milena Toscano (à direita)


Virgília, por Viétia Zangrandi (à esquerda); Nhã-Loló, por Ana Abbott (à direita)


Brás resolveu seguir os planos do pai e conheceu Virgília, com quem começou a namorar. Nesse tempo, ao levar seu relógio para consertar numa joalheria, reencontrou Marcela, atendente da loja, dessa vez envelhecida e castigada pela varíola. Virgília, por sua vez, acabou escolhendo outro marido, Lobo Neves, que também lhe tomou o cargo de deputado. Envergonhado socialmente, o pai de Brás definhou, incrédulo do vexame ter ocorrido com “um Cubas”, falecendo meses depois. O inventário foi dividido, de forma não-amigável, entre os dois filhos, Brás e Sabina, esposa de Cotrim. Com o tempo, Brás se aproximou do então deputado Lobo Neves – e consequentemente de Virgília, com quem dançou uma valsa e, enfim, reatou o romance, dessa vez secretamente, em adultério.

Nesse tempo, reencontrou o amigo de infância, Quincas Borba, que vivia em péssimas condições, nas ruas. Brás lhe deu um dinheiro, mas quando se despediram, num abraço, Quincas ainda assim furtou o relógio do velho amigo. Virgília, por sua vez, andava aflita, com medo de que o marido descobrisse a traição, em crescente suspeita pública. Ela não aceitava fugir com Brás, então os dois arranjaram um esconderijo, uma casa na Gamboa, onde instalaram uma velha conhecida da família, Dona Plácida, como álibi. Nessa época, Brás reencontra Prudêncio, seu ex-escravizado, que montava na infância, açoitando em praça pública um homem negro, reproduzindo em outrem a violência sofrida no passado. Lobo Neves é indicado para ocupar uma presidência de província no Norte no país, e convida Brás para ser seu secretário, mas acaba recusando, pois o número do decreto, 13, causava-lhe más impressões. Virgília, nesse meio-tempo, engravida; e Brás se reconcilia com sua irmã e seu cunhado, Sabina e Cotrim, que lhe apresentam uma nova pretendente de casamento: Eulália, mais conhecida como Nhã-Loló. Quincas Borba recebe uma herança em Minas Gerais e, abastado, devolve um relógio a Brás, em uma carta, onde conta sua nova Filosofia, o humanitismo: segundo ele, tudo é Humanitas (Deus), uma espécie de panteísmo; portanto, tudo que existe é bom, sendo as dores da vida uma grande ilusão.

Em seguida, uma série de desgraças: Virgília sofre um aborto; Lobo Neves recebe uma carta anônima, denunciando o adultério da esposa, e acaba por tentar novamente um cargo de presidência de província, dessa vez aceitando, pelo decreto 31, mudando-se com a esposa para longe, durante alguns meses; Brás ainda firma um noivado com Nhã-Loló. A moça se envergonha do próprio pai, que não contém os ânimos diante de apostas para rinhas de galo, algo visto como inferior pela alta sociedade. Em não muito tempo, Nhã-Loló acaba falecendo, jovem, de febre amarela. Brás, carente de sentido, percebendo-se envelhecido e sem grandes conquistas, torna-se deputado e discute no parlamento a diminuição das barretinas (chapéus) dos soldados, como se fosse algo de extrema importância. Almeja ser ministro, mas fracassa. Lobo Neves retorna ao Rio, com a esposa. Durante um baile, ao deslumbrar Virgília, ao longe, Brás suspira consigo mesmo: “Magnífica!”. Em uma carta, Virgília descreve a Brás a situação miserável de Dona Plácida, que também acaba morrendo.

Brás decide publicar um jornal, inspirado nas ideias do humanitismo, que ainda não havia sido organizado em livro por Quincas. Cotrim, seu cunhado, rompe relações com Brás, tendo em vista o caráter oposicionista do jornal. Lobo Neves morre. Virgília é vista sobre o caixão, aos prantos. Brás se reconcilia com Cotrim e entra para uma Ordem Terceira, isto é, filiando-se de modo leigo a um grupo religioso de caridade, onde presencia o falecimento de Marcela. Eugênia também é reencontrada, em situação miserável. Quincas Borba, novamente ao Rio, enlouquece, tendo queimado o próprio livro, e morrendo logo em seguida.

No fim da própria vida, o narrador retorna ao início do livro, onde se empreita na invenção de um derradeiro e glorioso projeto, o emplasto que leva seu nome; porém, o projeto fracassa e ainda lhe causa uma pneumonia, causa de sua morte.


Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.


// Brás Cubas, Capítulo CLX.



FONTES:

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Ilustrado por Candido Portinari. Rio de Janeiro: Antofágica, 2019.

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Audiolivro narrado por Leo Raoni (disponível na Audible).

José Monir Nasser (comentários sobre a obra, no YouTube).

QUEM SOMOS NÓS I Memórias Póstumas de Brás Cubas por Alcides Villaça (comentários sobre a obra, no canal “Quem Somos Nós?”, disponível no YouTube).

Imagens: retiradas do filme Memórias Póstumas (2001), dirigido por André Klotzel.


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