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sábado, 25 de fevereiro de 2023

RESENHA: Odisseia (de Homero)

 

Resenha de:

ODISSEIA

DE HOMERO

 

25 de fevereiro de 2023

Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia


Ulisses e Polifemo (1896), por Arnold Böcklin.


Odisseia é uma das maiores e mais antigas obras de aventura da literatura ocidental, composta provavelmente entre os séculos VIII e VII antes de Cristo, com atribuição histórica ao poeta Homero. Dividida em 24 cantos, cada qual funcionando como um capítulo cantado, a narrativa influenciou certamente um número inestimável de artistas, ao longo dos últimos milênios, de literatos e pintores à diretores de cinema, ecoando em seus pares, clássicos absolutos, como a Eneida, de Virgílio, A Divina Comédia, de Dante, e sobretudo Os Lusíadas, de Camões. Ao lado da Ilíada, também atribuída à Homero, constitui um dos alicerces da poesia épica universal, uma das formas mais arcaicas e prestigiadas de narrativa.

Seu título, Odisseia, significa simplesmente “a história de Odisseu” (ou de Ulisses, em latim), mas acabou por se transformar em sinônimo de “longa jornada aventureira”, devido seu conteúdo: conta-se o regresso do protagonista, Ulisses, à Ítaca, sua pátria, após vinte anos, passando por uma série de perigos, incluindo ciclopes, sereias, bruxas e deuses.

Os antecedentes são a própria Ilíada e a Guerra de Troia, que levou líderes de diversos reinos gregos a invadir terras troianas, como resposta à Páris, de Troia, ter tomado Helena, a mais bela das mulheres e esposa de um dos reis gregos, Menelau. Um dos líderes bélicos foi Ulisses, célebre por seus ardis, isto é, a capacidade de ludibriar, enganar e tramar estratagemas geniais. Foi ele quem armou o plano do “Cavalo de Troia”, oferecido de presente aos inimigos e recheado de soldados. Quando o cavalo, recebido, adentrou as muralhas, os aqueus (amigos-aliados de Menelau) saíram do interior do cavalo e tomaram a cidade, matando homens, escravizando mulheres e saqueando tesouros. Neste ponto, Ulisses estava longe de Ítaca há dez anos. Com a vitória, os líderes embarcaram em suas naus e rumaram de volta para casa; porém, com a destruição provocada, os deuses ficaram furiosos e mataram muitos desses exércitos. Mais quase dez anos se passaram, totalizando praticamente vinte, e Ulisses continuava sem retornar, perdido entre as inúmeras ilhas e o infindável “mar cor de vinho”, como dizia Homero.

Este, atribuído autor da obra, é uma incógnita. Os antigos acreditavam que Homero de fato existiu, mas a realidade é que não sabemos. Os cantos odisseicos eram originalmente orais em essência, passando de geração em geração por meio da voz. Passaram-se muitos séculos até que os antigos filólogos compilassem os cantos em forma textual, permitindo que sobrevivessem ao tempo. Sete cidades gregas se declararam pátria-mãe do poeta, visto como um aedo (poeta-cantor) cego – e talvez analfabeto. Seu idioma, grego, reunia uma série de diferentes dialetos, levando a crer que potencialmente a obra fora composta, ao longo de séculos, por muitos autores, como resultado de uma ebulição cultural. Talvez um desses autores tenha realmente se chamado Homero; talvez Homero tenha sido quem unificou as diversas aventuras folclóricas de Ulisses, contadas de pais à filhos; ou talvez Homero nunca tenha sequer existido.

A tradução utilizada, para a língua portuguesa, foi a de Frederico Lourenço; e a edição, da Companhia das Letras, com uma robusta introdução de 88 páginas, escrita por Bernard Knox, onde conhecemos pormenorizadamente o contexto da obra. Knox ainda assina as notas finais, não tão espaçosas quanto outras edições da mesma editora, mas que auxiliam em entendimentos pontuais. De bônus, ainda são inclusos mapas da Grécia continental, do Peloponeso e do Egeu e Ásia menor, para nos situar nas muitas andanças e viagens dos personagens – além de um guia de genealogias, para sabermos quem é filho de quem na história, tendo em vista que isso era de vital importância.

A linguagem, apesar de construída em versos, é bem fluída e permite o entendimento – mérito também, é claro, do tradutor. Viajar pela Odisseia é como assistir um grande filme épico, cheio de efeitos visuais, onde homens e deuses coabitam o Universo. Há muitas repetições de características dos personagens e da Natureza, como o epíteto do próprio Ulisses, sempre descrito como sendo “de mil ardis”; Atena, por sua vez, é quase sempre precedida de “a deusa dos olhos esverdeados”; Zeus, “o detentor da égide”; Hermes, “o matador de Argos” etc. Repete-se também, muitas vezes, o epíteto “semelhante aos deuses”, para designar a beleza de homens e mulheres, bem como “palavras aladas” para se referir às belas oratórias. No mundo natural, o amanhecer é “a aurora de róseos dedos” ou de “áureo trono”. Segundo a introdução de Knox, esses epítetos carregam um eco fortíssimo de oralidade, pois, antes da versão escrita, auxiliavam os aedos e conhecedores dos versos odisseicos na memorização e mesmo improvisação, pois facilitavam o preenchimento do verso dentro da métrica da obra.


Penélope e os Pretendentes (c. 1911), por John William Waterhouse.

 

O início do livro se dá no Olimpo, onde Atena, deusa da sabedoria, roga a Zeus que permita o regresso de Ulisses, após tantos anos afastado e tantas desgraças a se alinhar em Ítaca, sua pátria. Com a ausência de Poseidon, deus dos mares, que nutria ódio pelo mortal dos mil ardis, Atena tem a permissão de tramar um plano para o retorno do herói. Primeiramente, parte para Ítaca e incentiva Telêmaco, filho de Ulisses, a seguir até Esparta, onde receberá notícias de seu pai, pelo testemunho de Menelau. O jovem se vê rodeado diariamente por arrogantes pretendentes (do amor de Penélope, sua mãe), que consomem os bens do palácio – sobretudo, vinho e animais. Sem maturidade para expulsar os homens, o garoto se vê impotente e angustiado. Enquanto isso, Hermes, o deus-mensageiro, é enviado por Zeus até o destino do nosso protagonista, “preso” em uma ilha remota (sem qualquer embarcação) por Calipso, ninfa apaixonada por ele. Ou seja, a narrativa se inicia no meio da aventura, com muitos antecedentes já tendo ocorrido.

Entre os temas destacados pela Odisseia, encontram-se a restauração da ordem; o que nos compete, com sabedoria, mover as peças do próprio destino – enquanto forças universais delimitam linhas de ação; e valores morais, como lealdade e hospitalidade. Sem a presença (e a autoridade) do rei, a desordem se instaura no palácio de Ítaca: dezenas de homens frequentam diariamente os salões, a consumir riquezas do ausente soberano, além de ocuparem e sujarem o espaço tendo orgias com as servas mais desleais. O rei precisa, assim, usar de sabedoria (em uma época anterior ao florescimento filosófico) e enfrentar todos os desafios, humilhando-se e descendo inclusive ao submundo, para reconquistar a própria terra. Apesar das dificuldades, quando até mesmo um deus, isto é, uma força maior, que não podemos controlar, impede nosso regresso à estabilidade, com as ferramentas mentais e físicas certas, podemos conquistar objetivos julgados impossíveis. O desfecho não precisa necessariamente ser trágico.

Estruturalmente, a narrativa é não-linear, iniciando após muitos eventos, quando o protagonista se encontra na ilha de Calipso, retido como marido, e segue para o reino dos Feácios. No reino, Ulisses conta longamente suas desventuras, como um flashback cinematográfico, o que leva o leitor ao passado, logo após a queda de Troia. Relatados os feitos heroicos, Homero toma a palavra e nos encaminha – novamente de modo linear – ao desfecho. Em termos de métrica poética, os cantos são compostos em “hexâmetro dactílico”, isto é, versos de seis pés, com uma sílaba longa seguida de duas sílabas curtas. Tudo isso, dentro do que chamamos de gênero épico, que hoje engavetamos no interior do gênero narrativo, mais amplo e moderno. É poesia, mas não caracterizada pelo lirismo e sim pela sucessão de eventos, narrados pelo poeta.

Entre os protagonistas, situam-se Ulisses, ardiloso rei de Ítaca, célebre por seus estratagemas e habilidades físicas, que o permitiram sobreviver duas décadas em mares e terras distantes, onde monstros e deuses queriam sua desgraça; Telêmaco, filho do herói, que passa por um processo de intenso amadurecimento; e Penélope, arquétipo da esposa fiel, ao aguardar o retorno do marido durante todo esse tempo, enquanto enrola os muitos pretendentes com a desculpa de que precisa, antes de se casar novamente, tecer a mortalha do sogro, Laertes, muito embora, durante as noites, desfie o tecido para que o trabalho nunca chegue ao fim. Outros personagens importantes, ainda que pontuais, são o próprio Laertes, pai de Ulisses, que se isola em sofrimento desde o sumiço do filho; Eumeu, velho porqueiro, de coração nobre; os diversos e inconvenientes pretendentes de Penélope; Calipso, ninfa divina que se apaixona (e, de certo modo, aprisiona) Ulisses; e Circe, feiticeira que vive em ilha remota e transforma homens em animais.

Deuses olímpios também estão presentes, em auxílio ou punição, especialmente Atena, deusa da sabedoria, Hermes, deus-mensageiro, Poseidon, deus dos mares, e Zeus, detentor de raios. Suas ações espelham a resposta daquilo que os homens fazem na Terra, e podem resolver ou criar conflitos. Muitas vezes, há o artifício deus ex machina (“deus surgido da máquina”), quando a intervenção divina simplesmente resolve agir para que a trama se desenrole. Monstros, como ciclopes, gigantes canibais, sereias e criaturas diabólicas, como Circe e Caríbdis, são alguns dos empecilhos mais frequentes no caminho de volta, entre Troia e Ítaca, desafiando a frota de Ulisses.

As mulheres d’Odisseia são figuras comumente poderosas, como as citadas Calipso e Circe, estendendo-se até às muitas coadjuvantes, descritas comumente com brilho singular e estonteante beleza – o que pode surpreender, devido ao período tão distante em que a obra fora composta. Apesar do destaque feminino, se comparada a muitos romances pretensamente modernos, determinadas passagens envelheceram muito mal: há sacrifícios de animais aos deuses, coisa que, para nossos antepassados, soava normal, mas que hoje agride ferozmente nossa moral; além disso, assassinos e saqueadores de cidades são exaltados, muitas vezes. Devemos, pois, não esquecer do contexto grego em torno de 700 antes de Cristo, onde os valores morais e religiosos contrastam com nossa cultura.

Concluindo, ler a Odisseia foi uma experiência deliciosamente cinematográfica. Parece um filme, cheio de efeitos, com muita aventura, fantasia, ação, suspense, horror, comédia, drama e romance. Um prato cheio, completo. Não me admira que tal obra tenha, logo após a Ilíada, inaugurado a literatura ocidental, tendo em vista que seus dilemas, embora em contextos temporais longínquos, continuam a nos dizer muito sobre quem somos: lealdade, nostalgia do velho lar, necessidade de se armar física e mentalmente para encarar os monstros da vida, esperança, vingança e recompensa. Aliás, a famosa “cena do cachorro”, mais ao fim, é tão atual quanto os filmes caninos de Hollywood, que usam de nossa empatia aos cães como artifício para emocionar. No todo, uma epopeia-mor, que se norteia, no terço final, por um thriller de vingança estupendo.

 

Confira o provável itinerário de Ulisses, segundo Peter Struck:

Mapa disponível em: https://www.worldhistory.org/image/15906/odysseus-ten-year-journey-home/

 

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Em seguida, meu resumo cronológico da história, com spoilers:

 

Antes de tudo, os eventos narrados na Ilíada, com a tomada de Helena por Páris e a convocação dos exércitos aqueus, no intuito de derrubar Troia. Diz-se no poema épico posterior, Cípria, que Ulisses se recusava a ir para a guerra, preferindo ficar em Ítaca com sua esposa, Penélope, e seu filho pequeno. Para isso, fingiu estar louco – a espalhar sal nas plantações. A farsa só foi revelada quando colocaram seu filho, bebê, na frente do arado de asno, freando o ardiloso herói, que enfim partiu rumo ao conflito. Foram dez anos de cerco à Tróia, com a companhia de Aquiles, Agamêmnon e Menelau; até que Ulisses, em seu brilhantismo, armou o estratagema do Cavalo de Troia, que possibilitou a queda dos troianos. Foram cometidos muitos crimes, antes que os exércitos aqueus partissem para casa. Porém, os deuses, revoltosos com esses crimes, abateram grande parte dos guerreiros. Ulisses e seus companheiros de Ítaca, em 12 naus, rumaram à terra próxima dos Cícones, onde cometeram novos saques e violações, mas foram rechaçados pelos habitantes, que buscaram reforços e conseguiram matar alguns dos aqueus.

Em fuga, as 12 naus são desviadas de seu percurso por dez dias tempestuosos, indo parar na longínqua terra dos lotófagos, comedores da flora lótus. Lá, parte dos aventureiros acaba provando lótus, que funciona como um entorpecente: quem prova a droga, esquece-se do mundo e só quer saber de continuar a viver com os lotófagos. Ulisses leva os amnésicos à força de volta às naus e partem pelo mar.

Chegam na ilha dos ciclopes, gigantes de um olho só. Junto de doze homens, Ulisses entra em uma gruta, em busca de ajuda, onde vê rebanho e laticínios, queijo e leite estocado. Após o banquete, Polifemo, ciclope dono da gruta, fecha a passagem com uma colossal pedra e encontra os homens. Nosso protagonista pede que Polifemo seja um bom hóspede, em nome de Zeus, mas o ciclope violentamente arrebata dois marinheiros e os atira ao chão, esmigalhando seus corpos – para depois comê-los e se deitar, em sono. Os guerreiros restantes ficam, pois, presos dentro da gruta fechada. Ao acordar, Polifemo devora mais dois homens e sai para cuidar de suas ovelhas, selando novamente a gruta. Sozinhos, os marinheiros encontram um grande tronco e o aquecem ao fogo. Mais tarde, o ciclope retorna, fecha a entrada da gruta e devora mais dois homens. Ulisses, ardiloso como sempre, tenta conversar com o gigante: oferece seu vinho, roubado dos Cícones, e diz que se chama Ninguém. Polifemo aceita o vinho e se embriaga, dizendo que, em troca da gentileza, devorará Ulisses por último. Bêbado, tomba de sono. Eis que os guerreiros restantes veem a chance, erguem o tronco chamuscado e o espetam no olho do ciclope, que acorda aos berros, chamando seus amigos ciclópicos.


Ulisses contra Polifemo, em detalhe (c. 1550), por Pellegrino Tibaldi.

 

Eis que outros gigantes chegam, e perguntam à Polifemo:

 

“Que se passa, Polifemo, para gritares desse modo

na noite imortal, tirando-nos assim o sono?

Será que algum homem mortal te leva os rebanhos,

ou te mata pelo dolo e pela violência?”

 

De dentro da gruta lhes deu resposta o forte Polifemo:

“Ó amigos, Ninguém me mata pelo dolo e pela violência!”

 

Então eles responderam com palavras aladas:

“Se na verdade ninguém te está a fazer mal e estás aí sozinho,

não há maneira de fugires à doença que vem de Zeus.

Reza antes ao nosso pai, ao soberano Poseidon”.

 

// Homero, com tradução de Frederico Lourenço.

in Canto IX, versos 403-412.

 

Assim, os ciclopes vão embora. No dia seguinte, Ulisses e seus amigos se penduram debaixo das ovelhas e, deste modo, conseguem sair da gruta sem que Polifemo perceba. De volta às naus, Ulisses grita vangloriado ao gigante: “Ó ciclope, se algum homem te perguntar / quem foi que vergonhosamente te cegou o olho, / diz que foi Ulisses, saqueador de cidades, / filho de Laertes, que em Ítaca tem seu palácio”. Polifemo, ainda, tenta lhe atirar enormes pedras, mas não atinge as embarcações. Este episódio, com o cegamento do ciclope, é de vital importância na Odisseia, pois o gigante ferido é filho de Poseidon, deus dos mares. Este, enfurecido, não permite que nosso protagonista retorne à Ítaca – não, pelo menos, até que esteja ausente do Olimpo e Atena interceda pelo regresso do herói, o que acaba levando muitos anos.

Viajam até encontrar a ilha móvel-flutuante de Éolo, senhor dos ventos, que acaba por se afeiçoar ao ardiloso Ulisses e lhe dá um saco de couro, onde jazem fortes ventos, capazes de levar as naus seguramente de volta à Ítaca. Porém, perto de chegar ao lar, enquanto o rei dormia, um grupo de homens suspeita haver raros tesouros não-compartilhados no interior do saco, abrindo-o e libertando os ventos. Deste modo, são novamente afastados da terra-natal, voltando à ilha de Éolo. Este, espantado pelo azar do grupo, imaginando que um deus os desfavoreça, nega novo auxílio e expulsa os marinheiros.


Éolo dando os ventos à Ulisses, por Isaac Moillon.

 

São levados, pelos ventos e pelo mar, até à terra dos lestrigões, gigantes canibais. Sem saber a índole dos habitantes, o rei Ulisses, mais três homens, adentram a terra a fim de investigar e encontram uma jovem gigante, que lhes mostra o caminho até o palácio. Chegando lá, deparam-se com um povo imenso e agressivo, que devora um dos marinheiros, enquanto os outros fogem. Na praia, são surpreendidos por outros gigantes, que destroem as embarcações jogando pedras e comem os desventurados náuticos. Somente uma nau escapa da destruição, a de Ulisses, que embarca em grupo de doze homens, todos a remar desesperados.

Chegam à ilha de Circe, poderosa feiticeira. Lá, dividem-se em dois grupos. O primeiro, onde há o rei, fica vigiando a nau; o segundo, adentra a ilha e encontra a residência da bruxa. Convidados a entrar e a se banquetear, são muito bem servidos por Circe. Porém, após se alimentarem, são transformados em porcos – exceto um dos homens, desconfiado, que não entra na propriedade e volta para avisar Ulisses do perigo. Nosso protagonista, comovido, não deseja deixar a ilha até que seus amigos sejam novamente transformados em homens; então, parte até a casa da bruxa, cercada por dóceis leões e lobos (antigas vítimas da feitiçaria). No meio do caminho, Hermes, o deus-mensageiro, desce do Olimpo e o encontra, dando ao nosso herói uma erva rara, que coíbe os efeitos da magia da bruxa, além de aconselhá-lo. Com a erva ingerida, Ulisses é recebido por Circe, que lhe serve o banquete – mas, ao contrário do primeiro grupo, não é transformado em animal. Apavorada, a bruxa suplica reconciliação e liberta os marinheiros, que são trazidos de novo à forma humana. Na casa, passam muitos meses, usufruindo de boa comida e boa bebida. Ulisses se torna amante da bruxa, durante todo esse tempo. Até que, um dia, os homens sentem falta do lar, Ítaca, e pedem ao rei que, enfim, retornem. Um dos marinheiros, sem querer, acaba caindo do alto da casa e morre.


Circe (1889), por Wright Barker.

 

Aconselhados pela divina feiticeira, que sopra um vento favorável, partem até o extremo-ocidente, até à entrada do Hades, onde jazem os mortos. Lá, fazem sacrifícios aos deuses. O marinheiro morto recentemente, ao cair do alto da casa, surge espectral e roga que Ulisses lhe sepulte o corpo, para assim adentrar o submundo. Em seguida, surge Tirésias, o célebre adivinho tebano cego, que Circe mandou o herói encontrar. Tirésias, então, diz a profecia: Ulisses e seus amigos devem evitar a cobiça e não matar o gado do Sol, para assim retornarem sãs e salvos à Ítaca; caso contrário, novas desgraças cairão sobre eles e o rei, se um dia voltar pra casa, irá ainda se demorar muitos anos. Outros espíritos aparecem, como a mãe do ardiloso herói e seus antigos companheiros da Guerra de Troia, como Aquiles e Agamêmnon.

Tendo partido da entrada do Hades, retornam à ilha de Circe para enterrar o insepulto amigo morto. Circe novamente aconselha os azarados aventureiros, para que passem pelo gado do Sol e, enfim, cheguem à Ítaca. No meio da viagem, encontram a ilha das sereias (ou sirenas, mulheres-pássaro, como harpias, não mulheres-peixe, como entendemos hoje). Ulisses tampa os ouvidos dos marinheiros com cera e pede que o prendam em cordas no mastro, assim, consegue ouvir o canto das mulheres-pássaro e permanecer vivo – enquanto muitos esqueletos jazem na ilha, restos de homens atraídos pelo belíssimo canto das criaturas.

Na sequência, precisam passar pela estreita passagem entre duas terras: de um lado, Cila, uma terrível monstra de várias cabeças; do outro lado, Caríbdis, monstro marinho, como um redemoinho, que suga e expele tudo que encontra ao mar. Outros tantos são devorados, nessa passagem. Após o desafio, chegam à ilha do gado do Sol, onde são impedidos de prosseguir, devido o vento desfavorável. Passam muitos dias na ilha, com a tentação de comer os brilhantes bois divinos. Certo dia, quando Ulisses caíra no sono, os marinheiros famintos não resistiram: mataram e comeram os bois, pois preferiam a ira dos deuses a morrer de fome. Com a chegada do rei, os ventos sopram à favor, e prosseguem viagem; até que uma negra nuvem se adensa em cima da nau e Zeus, com seu raio, pune os aventureiros, matando-os – com a exceção de Ulisses, que naufraga, agarrado aos destroços da embarcação.

Fica à deriva por muitos dias, voltando por caminhos passados até chegar à ilha da ninfa Calipso, que o retém por anos como amante. É aqui que o livro, de fato, começa – vale lembrar que os acontecimentos anteriores são narrados pelo protagonista na terra dos Feácios.


Ulisses e Calipso (1883), por Arnold Bocklin.

 

Perto de completar vinte anos longe de casa, nosso protagonista enfim é libertado pela ninfa – que fora constrangida por Hermes, o deus-mensageiro, a pedido de Zeus. Enquanto isso, pretendentes de sua esposa, em Ítaca, consomem seus bens e instauram a desordem moral, quando Atena chega no palácio e instiga Telêmaco, filho do herói, a realizar sua própria aventura.

A viagem de Telêmaco (chamada “Telemaquia”) é um núcleo à parte, onde o jovem conquista o respeito de seus concidadãos, ao se arriscar no mar em busca de notícias do pai. É este o intuito de Atena, que o mentoreia durante parte do percurso. Com sua própria aventura consumada, passará pela maturação necessária à conquista da autoridade. No caminho, chegando ao continente, recebe o apoio do notável guerreiro da Guerra de Troia, Nestor, que o encaminha ao palácio do loiro Menelau e sua esposa, Helena. Lá, Menelau lhe conta que precisou encurralar o Velho do Mar para obter resposta sobre os paradeiros de seus antigos companheiros de guerra, perdidos há anos no vasto mar. Nisso, somos levados até o conhecimento da atual estadia de Ulisses – e passamos a acompanha-lo em suas aventuras.

Liberto e tendo construído uma jangada, abastada por Calipso, Ulisses se põe a navegar por vários dias, até avistar a ilha dos Feácios no horizonte. Porém, Poseidon, o deus dos mares, avista o solitário marinheiro (que lhe cegou o ciclópico filho, vale lembrar) e agita o mar, em terrível tempestade. Com sua jangada destroçada pelas ondas, o guerreiro de Ítaca acaba chegando, quase morto, ao litoral e se esconde no denso bosque.

Atena, a deusa de olhos esverdeados, instiga oniricamente Nausica, princesa dos Feácios, a ir ao rio lavar roupas, na companhia de servas. Ao chegar, Ulisses ouve as vozes das garotas e surge, nu, do meio das matas, clamando por ajuda. Eis uns dos versos homéricos mais belos da obra, proferidos por nosso herói, diante da princesa:

 

“Ajoelho-me perante ti, ó soberana. Serás deusa, ou mulher?

Se és uma das deusas, das que o vasto céu detém,

é a Artêmis, à filha do grande Zeus, que mais aproximadamente

te assemelho, pela beleza, pelas proporções e pela altura.

Mas se és uma mulher mortal, das que na terra habitam,

três vezes bem-aventurados são teu pai e tua excelsa mãe;

três vezes bem-aventurados os teus irmãos! Será constante

a alegria que no seu coração eles sentem por tua causa,

quando veem um caule florido como tu a entrar na dança.

Por sua vez é mais bem-aventurado de todos aquele homem,

Que com os presentes nupciais te levar para sua casa.

Nunca com os olhos vi outra criatura mortal como tu,

homem ou mulher: é reverência que sinto quando olho para ti [...]”.

 

// Ulisses in Canto VI, versos 149-161.

Homero, com tradução de Frederico Lourenço.


 

Ulisses e Nausica (1888), por Jean Veber.

 

Ajudado por Nausica, pelas servas e pela deusa da sabedoria, nosso aventureiro chega ao palácio do rei Alcino, onde recebe comida, bebida e descanso. Lá, ao ouvir um cego aedo cantar sobre a Guerra de Troia, chora copiosamente e desperta a atenção do anfitrião. Aqui, Ulisses começa a contar suas longas desventuras, da queda de Troia ao naufrágio na ilha de Calipso. Comovidos, os Feácios ajudam o veterano guerreiro e o embarcam, com valiosos presentes, de volta à Ítaca. Colocam-no, a dormir, na terra-natal, e partem – mas Poseidon, ao perceber a derrota, transforma a nau dos Feácios em pedra, o que os torna temerosos de ajudar estrangeiros no futuro.

Ao despertar, Ulisses receia ter sido enganado e duvida de sua estadia, após tantas desgraças vivenciadas. Atena surge e lhe responde: enfim estava realmente em Ítaca. Emocionado, o guerreiro cai ao chão e beija o solo. Contudo, havia mais um grande desafio pela frente: derrotar os pretendentes de sua esposa. O plano, para isso, foi o seguinte: disfarçar Ulisses de mendigo, para que possa penetrar no palácio, sem ser reconhecido, e conhecer, de fato, quem merece sua vingança. Deste modo, Atena transforma o herói em um velho de andrajos, que adentra sozinho a ilha.

 

Ulisses transformado por Atena em mendigo (1775), por Giuseppe Bottani.

 

Primeiro, ruma ao casebre de Eumeu, o porqueiro, que não reconhece o patrão e demonstra ter sido leal, o tempo todo. Telêmaco, por sua vez, retorna de Esparta em segurança – ajudado por Atena, que lhe auxilia a evitar uma emboscada que os pretendentes haviam planejado, na intenção de mata-lo. No casebre, com a ausência do porqueiro, Telêmaco encontra o próprio pai, que lhe conta toda verdade e plano.

Ainda na forma de mendigo, Ulisses entra em seu antigo palácio, onde contempla um cachorro. Eis uma das cenas mais emocionantes do livro:

 

“[...] um cão, que ali jazia, arrebitou as orelhas.

Era Argos, o cão do infeliz Ulisses; o cão que ele próprio

criara, mas nunca dele tirou proveito, pois antes disso partiu

para a sagrada Ílio. Em dias passados, os mancebos tinham levado

o cão à caça, para perseguir cabras selvagens, veados e lebres.

Mas agora jazia e ninguém lhe ligava, pois o dono estava ausente:

jazia no esterco de mulas e bois, que se amontoava junto às portas,

até que os servos de Ulisses o levassem como estrume para o campo.

Aí jazia o cão Argos, coberto de carraças dos cães.

Mas quando se apercebeu que Ulisses estava perto,

começou a abanar a cauda e baixou ambas as orelhas;

só que já não tinha força para se aproximar do dono.

Então Ulisses olhou para o lado e limpou uma lágrima [...]

 

Mas Argos foi tomado pelo negro destino da morte,

depois que viu Ulisses, ao fim de vinte anos”.

 

// Homero, com tradução de Frederico Lourenço.

in Canto XVII, versos 291-327.

 

Ao entrar no palácio, Ulisses é humilhado pelos pretendentes e por algumas servas, desleais. Fazem troça dele, por sua aparência. Penélope se afeiçoa por suas palavras, embora não o reconheça, e pede que a velha ama Euricleia lave seus pés. Quando isso ocorre, a idosa reconhece Ulisses – pela cicatriz na perna, herança de um ataque de javali; mas é coagida a não contar nada. Durante dias, o ardiloso herói, disfarçado, analisa cada pretendente e cada servo.

Penélope, desejosa de pôr termo à corte dos pretendentes, declara um desafio: quem conseguir atirar uma flecha, usando o arco do marido, por entre os vãos de uma série de machados, teria sua mão em casamento. Os pretendentes tentam, mas não conseguem sequer esticar o arco. Telêmaco, o porqueiro e o boieiro começam a armar o estratagema: tiram as mulheres da sala e trancam as saídas. Ulisses pega o arco, cumpre o desafio, e revela sua verdadeira identidade, começando a matar cada pretendente, com flechadas. Os três aliados, com elmos, armas e escudos, ajudam na matança, até que todos os desleais pretendentes estejam mortos. Mais tarde, as servas desleais são enforcadas.

 

Ulisses e Telêmaco matam os pretendentes de Penélope (1812), por Thomas Degeorge.

 

Concluída a vingança e restituída a ordem, Ulisses e Penélope se encontram. De início, ela não acredita – é preciso que seu marido diga um detalhe que apenas seu círculo íntimo reconheça, no caso, a natureza da cama nupcial do casal. Rompidas as dúvidas, emocionam-se e festejam com as servas restantes, Telêmaco, o porqueiro e o boieiro. Em seguida, o casal vai ao leito, onde conversam e usufruem do amor um do outro – em uma noite atipicamente longa, em que Atena atrasa a aurora. Ao amanhecer, Ulisses parte para a casa de seu pai, Laertes, e revela estar vivo – outra cena belíssima, em que o idoso chora o milagre, sem crer. Zeus e Atena, por fim, providenciam que os parentes dos pretendentes mortos não iniciem novo conflito, permitindo que Ulisses reine soberano e feliz.

 

FONTES: Homero. Odisseia. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço; introdução e notas de Bernard Knox. São Paulo: Penguin Classics - Companhia das Letras, 2011.

José Monir Nasser (comentários sobre a obra, no YouTube).

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