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domingo, 6 de dezembro de 2020

RESENHA: Folhas de Relva (de Walt Whitman)

 

Resenha de:

FOLHAS DE RELVA

ESCRITO POR WALT WHITMAN

 

6 de dezembro de 2020

Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia


Whitman fotografado por Mathew Brady


           Folhas de Relva é um clássico universal da poesia, publicado pelo poeta e jornalista estadunidense Walt Whitman, pela primeira vez, em 1855. A presente resenha é sobre a primeira edição da obra – que teve um total de sete edições. No livro, a poesia se liberta das tradições europeias e segue um estilo único, sem engessamentos de rimas ou métricas. É o canto do galo do chamado “verso livre” e veio a iluminar os movimentos modernistas do século seguinte. O título da obra expressa a intenção de Whitman em mover a poesia dos seletos tronos da glória para o plano comum (alcançável), para o dia-a-dia do campo, da cidade e dos trabalhadores. A relva é o capim, o gramado selvagem que brota em todas as partes, sem distinção. Nisso, o poeta buscou fundir seu espírito ao espírito coletivo, de seu tempo e espaço, animado e inanimado. Ele torna-se, na poesia, as pedras, as águas e todo tipo de gente, seja homem ou mulher. De acordo com Ezra Pound, Whitman é para os Estados Unidos o que Dante é para a Itália. Nas palavras de Jorge Luis Borges, “Whitman, que numa redação do Brooklyn, entre o cheiro de tinta e de cigarro, toma e não diz a ninguém a infinita decisão de ser todos os homens e de escrever um livro que seja todos”. Este livro é Folhas de Relva.

            A primeira edição do clássico, segundo posfácio de Rodrigo Garcia Lopes, que fornece boa parte da fonte de informações para a nossa resenha, é a mais simbólica, pois carrega o auge e a pureza do estilo revolucionário do autor. Lançada em 1855, a edição apresenta uma dimensão considerável (para comportar os longos versos whitmanianos), uma capa dura verde-musgo, com relevo em formato de folhas, e o título, dourado, como se as letras se fundissem à flora, raízes e ramos. Não há o nome do autor, nem da editora. No frontispício, uma fotografia emblemática de Walt, usando chapéu e trajes banais. Provavelmente, é o primeiro livro de poemas a incluir uma foto – invenção recente, na época. O nome de Walter Whitman Jr. consta discretamente, enquanto pessoa jurídica a registrar os diretos da obra. O nome do autor, porém, a persona poética de Walt Whitman, só aparece dentro de um verso do magnífico poema Canção de Mim Mesmo. Por isso, em um primeiro momento, o livro aparenta não indicar o autor, a não ser pela fotografia – como se a imagem fosse a assinatura do poeta. Na sequência, um prefácio (removido das edições posteriores), que é um ensaio em prosa, embora tenha o mesmo gosto e ritmo dos poemas. Estes, por sua vez, são divididos em doze. Na edição de estreia, os poemas não tinham título específico e comungavam do nome do próprio livro, Folhas de Relva. Posteriormente, cada poema ganhou um nome particular. A tipografia é marcada pela ausência das antigas e rígidas regras, sendo livre, caótica, não importando se um verso é “longo demais”. Pode faltar vírgula e sobrar reticências e pontos, não tem problema.

            As demais edições, onde a sétima e última é chamada de “edição do leito de morte”, visto ter sido publicada nos instantes finais da vida do poeta, trazem várias alterações nos poemas, como cortes e atenuações, além de novas poesias. Para se ter uma ideia, a última edição, de 1892, conta com mais de 400 poemas – em contraste com os 12 originais, da edição número 1. São, portanto, livros bem diferentes.

            Walt nasceu em maio de 1819 no Estado de Nova Iorque, Estados Unidos. Na juventude, trabalhou como carpinteiro, tal seu pai, e professor, mas destacou-se na profissão de jornalista, tendo editado e escrito para inúmeros jornais, onde conheceu a tipografia, elemento peculiar de seus versos. Frequentou também bibliotecas, o lar dos clássicos, além de teatros e óperas, assim como a boemia. Outros trabalhos relevantes de sua carreira são: Franklin Evans (1842); The Half-Breed (1846); Life and Adventures of Jack Engle (1852); Manly Health and Training (1858); Drum-Taps (1865) e Democratic Vistas (1871). Durante a Guerra Civil Americana, foi voluntário e enfermeiro, ajudando física e emocionalmente os combatentes feridos. A experiência minou sua, até então, invejável saúde (física e mental). Ele foi também discípulo da filosofia transcendentalista do filósofo Ralph Waldo Emerson, vendo “a personalidade humana como um fragmento da personalidade de Deus ou do Universo” (posfácio, p. 217). Essa ideia se perpetua nos poemas da obra, onde a individualidade de cada coisa é um pedaço do “eu” universal. Emerson, muito admirado pelo poeta, chegou a redigir uma carta altamente elogiosa sobre a primeira edição do livro, o que deixou Walt deveras orgulhoso. Na época, o elogio foi uma exceção, tendo em vista que a crítica americana malhava os versos de Whitman, acusado de preguiçoso e obsceno. As referências explicitamente sexuais causaram polêmica na época. Com o tempo, passou a ser celebrado, até mesmo na Europa. Oscar Wilde, inclusive, chegou a visita-lo na América. Aos 50 anos, aparentava ser muito mais velho (herança genética de seu pai, dizem). Tornou-se, enfim, um senhor de longas barbas brancas à la Gandalf e veio a falecer em 1892. O poeta do corpo, da alma, da liberdade e da democracia foi ainda mais lido e amado após a morte.


 Whitman no frontispício de Folhas de Relva (1855).

 

            Sua influência reverbera até hoje, em todas as partes do mundo. Fernando Pessoa, para dar um exemplo, foi influenciado diretamente pelo verso livre e o fluxo de consciência de Whitman. Seu Álvaro de Campos expressa a afinidade entre os dois poetas com maestria em “Saudação a Walt Whitman”: “De aqui, de Portugal, todas as épocas no meu cérebro, / Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo, / Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos, / Concubina fogosa do universo disperso, / Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas / Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões”¹. D. H. Lawrence, outro grande, foi mais um inspirado, tal como o nosso Paulo Leminski e o anteriormente citado Ezra Pound. Diria que qualquer autor do último século, livre em seu versejar, passa pelo legado, direta ou indiretamente, do Bardo da Democracia, como também é conhecido. A própria cultura do século XX veio a receber o seu eco – hippies e a revolução (pregando liberdade) sexual dos anos 60 e 70 não deixam de ter muitas afinidades com o autor.

            Na cultura pop, o poeta é mencionado em filmes como Sociedade dos Poetas Mortos, onde os personagens celebram seu poema “Oh capitão! Meu capitão!”, escrito em homenagem ao então recém-assassinado presidente norte-americano Abraham Lincoln, além da série Breaking Bad, na qual o Folhas de Relva desempenha papel de grande relevância no roteiro da última temporada.

            Centrando-se no contexto de lançamento da obra, podemos entende-la como um marco. Seu texto é o atestado de independência da poesia estadunidense. Nela, Walt encarna o homem do novo-mundo, americano, mas também cosmopolita – o mundo fluía pelas calçadas movimentadas da cidade grande. É impossível separar a obra de seu momento histórico, de seu otimismo no futuro da nação. Era comum crer no chamado “Destino Manifesto”, crença na prosperidade da nação enquanto vontade de Deus – tal ideia, misturando fé e patriotismo, aparece nas páginas do livro. A essência da experiência americana está contida no fluxo de seus versos. Décadas antes de Folhas, a literatura estadunidense engatinhava. Buscava-se uma revolução artística e cultural, mas se encontrava apenas cópias do estilo europeu. Era uma nação que prezava mais pela necessidade de expansão e crescimento do momento, valorizando o trabalho de engenheiros e advogados, como bem coloca Rodrigo Garcia Lopes no posfácio. Na época, a expansão pelo “Velho Oeste” estava a todo vapor. Somente na primeira metade e, especialmente, meados do século XIX, escritores de peso elevaram o nível das letras norte-americanas. Nisso, inclui-se certamente Edgar Allan Poe e Henry David Thoreau. Foi um período de efervescência literária, onde um romantismo (atrasado, diga-se de passagem) inspirava os novos autores. O espírito do tempo, pregando inovação e originalidade, levou Whitman a assumir o manto de poeta da sua geração. Ele chega com essa excelente geração de escritores e inaugura o modernismo na poesia global.

Folhas é, de acordo com o próprio autor, uma “experiência de linguagem”. Walt e o livro se misturam. Segundo ele: “Quem toca este livro, toca um homem”. Portanto, como disse Maria Clara Bonetti em entrevista ao programa Literatura Universal², temos homem, livro e país no mesmo objeto. Seus temas são cambiantes e frenéticos, passando de uma história à outra como o pensamento a atravessar em alta velocidade o mundo interior. Em liberdade pura, flui por operários, marinheiros, maquinistas, alcança o espaço sideral, abarcando o cosmos, e desata na guerra, no desespero e na agonia, para enfim retornar à esperança e à ternura. Há um caráter xamânico, na incorporação de todas as coisas, um quê de cósmico, romântico e transcendental. Percebe-se também a influência da frenologia, pseudociência muito em voga na época. Na obra, não há hierarquias nas entidades, nem nas palavras. É uma poesia do homem comum, não de um gênio intocável iluminado por deusas. Com vasto vocabulário, emprega termos indígenas e de outros idiomas, colocando todos no mesmo plano. A palavra mais incomum, de status, recebe o mesmo valor da palavra plenamente cotidiana: todas têm sua beleza. Ele tira essas centenas, milhares de palavras para dançar e dá seu “grito bárbaro sobre os telhados do mundo”, convocando o leitor a degustar da própria presença em sintonia com todas as coisas que existem no tempo em que existem: o agora. Whitman também se vale do conceito de “merge”, que é a fusão de seu espírito com a realidade, com cada ente que lhe aparece. Há um devir, uma transformação constante e fluída de experiências. É uma poesia que, quanto mais mergulhada dentro do autor, mais acaba se tornando universal. Vê-se, com ela, a beleza do sexo, da natureza, do trabalho, de cada coisa marginalizada e livre. Tudo na base de um “pensamento em forma de rizoma”. Explico: os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari, em Milles Plateaux, expõem duas formas de pensamento. A primeira forma é a da árvore (fixa, imóvel, com raízes, limites e hierarquia), muito usada pelos europeus tradicionais. A segunda forma é a rizoma (que cresce horizontalmente, sem distinções, grassando por todos os caminhos). Whitman e suas Folhas de Relva certamente são um exemplo paradigmático de “pensamento-rizoma”.

            Revolucionário para a época, Walt põe em suas folhas, também, todo o seu homossexualismo, sem qualquer tabu ou pudor. É uma sexualidade natural, espontânea e desavergonhada, em um período histórico onde nem a palavra homossexual existia e o preconceito era abundante. Com o erotismo, surge também a adoração ao corpo, mas sem deixar de admirar a alma. É um composto que nada exclui e tudo absorve. O igual e o diferente, o sublime e o “fútil”, tudo recebe sua atenção e seu brilho.

            Estilisticamente, Folhas causou outra revolução linguística. O “verso livre” é basilar, mas podemos citar outras características. A ênfase na oralidade dos versos, por exemplo. Whitman era apaixonado pelo bel canto, por ópera. Era algo que vibrava em seu coração e que inspirou a essência do livro. Seus poemas foram compostos visando a audição de um público, uma plateia, tal teatro. Oralidade essa que toma um quê bíblico ou mesmo homérico. Infelizmente, com as traduções, parte da experiência se transforma em algo distinto, tendo em mente que ele escolhia os fonemas em inglês, obviamente, para gerar determinados efeitos, como a ênfase de determinadas repetições sonoras. A repetição também se dá no seu paralelismo, que substitui a métrica convencional e dá ritmo e dinamismo, combos de diferentes efeitos imagéticos na mesma repetição. Ele usava muito a conjunção “e”, ampliando o sentido de continuidade do aqui-agora. A imagem, na sua poesia, bebe das fontes da fotografia, uma arte ainda bebê, por assim dizer. Como um álbum, ele apresenta uma série de “instantes congelados”, seja da vida caótica de sua Nova Iorque ou do trabalho rural, como se a poesia capturasse e eternizasse o efêmero. O caráter orgânico do poema também é descrito por Garcia Lopes no posfácio da edição: como uma semente, os versos se desenvolvem livre e despreocupadamente por todos os temas, grassam em um fluxo de consciência (que inspirou os modernistas). Expandem-se como as ondas, retraem-se, inundam a nossa mente.

            Conhecer o clássico foi uma experiência mista. Por um lado, em um primeiro momento, tive dificuldade em aceitar a liberdade quase caótica do poeta, bem diferente de tudo que já li na vida. Por outro, tomando conhecimento de seus conceitos, do contexto e da proposta, pude imergir mais intensamente em cada verso. Assim, fui arrebatado por uma viagem longínqua, ancorado em cada verso e, ao mesmo tempo, a fluir por dentro de uma pluralidade inabalável de ideias.

 

Whitman fotografado por George Collins Cox

 

-

 

“[...] Todas as doutrinas, políticas e civilização surgem de você,

Todas as esculturas e monumentos e qualquer coisa inscrita em qualquer lugar são assinalados em você,

A essência das histórias e estatísticas até onde existam registros estão em você agora

– e o mesmo com lendas e mitos;

Se você não estivesse respirando e caminhando aqui o que seria de tudo isso?

Os poemas mais célebres seriam cinzas….orações e peças seriam vácuos.

Arquitetura é o que você faz dela enquanto a observa;

Pensou que ela estava na pedra cinza ou branca? Ou nas linhas dos arcos e das cornijas?

Música é aquilo que desperta de você quando os instrumentos se lembram de você,

Não está nos violinos e trompetes….nem no oboé nem no bater dos tambores –

nem nas notas do barítono cantando sua suave romança….nem nos corais

masculinos, nem nos corais femininos,

Está mais perto e mais longe do que tudo isso. [...]

 

// trecho de “Canção às ocupações”, Walt Whitman traduzido por Rodrigo Garcia Lopes.

 

FONTES: WHITMAN, Walt. Folhas de Relva (primeira edição). Tradução e posfácio de Rodrigo Garcia Lopes. São Paulo: Editora Iluminuras, 2008.

¹ Poema completo: jornaldepoesia.jor.br/facam05.html

² Literatura Fundamental 92: Walt Whitman - Maria Clara Bonetti Paro. Disponível em: https://youtu.be/Z9n6iorhYt8


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