Resenha de:
FAHRENHEIT
451
DE RAY BRADBURY
23
de dezembro de 2023
Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia
Arte: Steve Crisp, com fundo de Andrey Sokolov.
Fahrenheit 451 é um romance do escritor estadunidense Ray Bradbury, e um marco da
ficção-científica distópica do século XX, ao lado de outras duas obras do
gênero: Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George
Orwell. Seu título se refere à temperatura, em graus fahrenheit, em que
o papel de livros começa a arder e pegar fogo, fazendo uma alusão ao corpo de
bombeiros – que, na trama, ao invés de apagar incêndios, queima livros, então
proibidos por lei. Guy Montag, nosso protagonista, é um desses bombeiros; mas,
influenciado pela jovem sonhadora Clarisse, passa a questionar os porquês de
seu ofício. Situados em uma metrópole futurista, governada e vigiada por um
Estado totalitário, as pessoas se esqueceram do valor da liberdade e da
reflexão, entregando-se ao conforto de tecnologias hedonistas e buscando
tão-somente vazios prazeres. Uma sociedade alienada, sem Filosofia, com domínio
absoluto da técnica. Hoje, a obra se firma como clássico absoluto da
literatura, sendo lida e relida por gerações – e também (ironicamente) muito
censurada.
Publicado originalmente em 1953, o livro foi desenvolvido a partir da
novela The Fire Man, datilografada pelo autor no porão da biblioteca da
Universidade da Califórnia, Los Angeles, onde máquinas de escrever eram
alugadas a 10 centavos, por meia-hora. Divide-se em três partes: primeira, A
lareira e a salamandra; segunda, A peneira e a areia; terceira, O
brilho incendiário. Na edição utilizada, do selo Biblioteca Azul, com
tradução de Cid Knipel, há ainda uma inspirada introdução, escrita por Neil
Gaiman, além de um posfácio e um “desabafo”, do próprio autor.
Ray Bradbury, nascido em 1920 e morto em 2012, foi, antes de tudo, um
intelectual, muito lido, amante dos grandes clássicos literários – tão bem
referenciados em Fahrenheit 451. Ele escreveu notavelmente romances e
contos, sobre ficções-científicas, fantasias e histórias de terror. Além de “Fahrenheit”,
obteve grande sucesso com Crônicas Marcianas (1950), onde os homens de
Marte servem de analogia aos povos indígenas americanos – e o genocídio que
sofreram. Foi um grande roteirista de cinema, tendo adaptado às telas o texto
de Moby Dick, clássico de Herman Melville, em 1956.
Entre os personagens da trama, Guy Montag é o principal. Bombeiro, de
início passivo e irreflexivo, passa por questionar o mundo ao ser “picado” pela
poesia e pelo senso crítico. Descobre nos livros o “assombro”, tornando-se
impulsivo, sentimental e perigosamente corajoso – não que essas qualidades não
existissem dentro dele, mas sim que estavam dormentes, presas no inconsciente.
Montag é um turbilhão de emoções. Identificamo-nos com suas dores e desejos, na
insensível e límbica metrópole. Mildred, esposa de Montag, representa a persona
comum de sua sociedade, o arquétipo dominado pelos vícios tecnológicos, fútil,
frágil e sem personalidade. Ela adora interagir com sua “família artificial”,
na “sala de televisores”, com três telas, uma em cada parede.
Beatty é o capitão do corpo de bombeiros, chefe de Montag, um homem
bem-articulado, sarcástico, provocativo e impressionantemente culto – passível
de diversas interpretações psicanalíticas. Junto ao sabujo mecânico, uma
espécie de cão-robô superinteligente, podemos considera-lo vilão da história. Ele
acredita que livros sempre incomodam algum grupo; e que, por isso, devem ser
proibidos. Segundo o capitão, literatura torna as pessoas arrogantes, o que não
deveria ocorrer em uma sociedade de bem-estar absoluto, com ninguém se sentindo
inferior. Sem livros: sem incômodo, sem inveja, sem divergências. Porém, nas
palavras dele, a própria humanidade abandonou a leitura, em concorrência com a
tecnologia.
Clarisse McClellan é uma jovenzinha sonhadora, vizinha de Guy,
encantadoramente estranha, como a protagonista de O Fabuloso Destino de
Amélie Poulain (2001). Nas palavras de Beatty, “ela não quer saber como
uma coisa é feita, mas por quê”, tornando-a “perigosa” ao sistema. Faber
é um velho intelectual, cansado e temeroso de combater as políticas do Estado,
vive escondendo sua verdadeira personalidade, mas guarda um quê de esperança.
Por fim, cito personagens menores, como os colegas de Guy, as amigas
superficiais de Mildred e os homens-livro, especialmente Granger, com sua
invejável eloquência.
“Fahrenheit” teve seu contexto de produção durante os anos iniciais da Guerra Fria, com uma tensão e um medo constantes de estourar um conflito nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética. Esse medo aparece no livro, com jatos supersônicos sobrevoando a cidade de hora em hora, enquanto a população permanece ingênua sobre os perigos da guerra. Uma época onde temíveis Estados totalitários ameaçavam a liberdade e a democracia; onde a tecnologia (sobretudo, da comunicação) avançava brutalmente. Tudo isso se reflete na obra, com uma caricatura que, hoje, não é mais tão estranha à realidade. Ray previu, por exemplo, o abandono espontâneo dos livros pela humanidade, em troca de “telas altamente tecnológicas” e “fones de ouvido”. Nada mais “moderno”, não? Há ainda uma estética, e mesmo um comportamento, retrofuturista, isto é, no qual o futuro é concebido, imaginado pelo passado, com elementos próprios ao universo norte-americano de meados do século 20, como atenta Gaiman na introdução da edição. Por exemplo, jovens rebeldes buscando aproveitar a vida em alta velocidade – aqui, em carros à jato. Percebe-se até na fala de Mildred, esposa de Montag, um quê de encenação própria às atrizes de cinema da época, pelo menos na tradução em português.
Arte: Luke Brookes, in reedsy.com/luke-brookes
O estilo de Bradbury é altamente descritivo psicologicamente, com
detalhes dos estados emocionais de nosso protagonista. Muitas vezes, temos
acesso às sutilezas expressivas de cada personagem do convívio de Montag, sem,
no entanto, entregar demais sobre o que cada um deles realmente pensa e sabe.
Isso acontece durante os encontros de Guy com o capitão Beatty, seu chefe, que
sorri de modo sarcástico, fazendo sempre comentários suspeitos. A mão de Montag
é um capítulo à parte, como se agisse de modo autônomo, realizando aquilo que,
no fundo, seu dono deseja. Há longos (e deliciosos) monólogos filosóficos,
especialmente de Beatty, Faber e Granger – escritos com maestria. Passagens são
tão carregadas de sabor poético, a partir da diegese em primeira pessoa, que
caímos em cenários oníricos e surrealistas. A própria estética da metrópole,
sombria, com outdoors colossais, cria uma aura pesada, de pesadelo.
Entre os temas, destaco a substituição da liberdade pela “felicidade”,
ainda que uma “felicidade” flébil, cômoda e vazia, o que talvez devêssemos
chamar por outro nome; afinal, os personagens de Fahrenheit
definitivamente não parecem felizes. É justamente a pergunta de Clarisse à
Montag, “você é feliz?”, que desencadeia uma série de mudanças internas no
bombeiro. O lema de seu mundo é: “Divirta-se. Pegue um carro à jato e dirija a
centenas de quilômetros por hora, sinta a adrenalina, assista palhaços na
televisão, jogue, ouça músicas em altíssimo volume, mas nunca questione o
sistema”.
Sem livros, as pessoas são obrigadas a acreditar naquilo que recebem dos
meios de comunicação, sem o aval do crivo da razão. Há uma espetacularização
dos telejornais, transformando cada caçada policial em um evento de massa, algo
muito teorizado por Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo, e Jean
Baudrillard, em Simulacros e Simulação. Em linguagem mais filosófica, os
signos da mídia imperam, na trama, em simulacros de terceira ordem, ditos “operacionais”,
isto é, implodindo a “verdade” e instaurando uma sociedade da aparência, da
imagem controlada, artificial, como diria Baudrillard. O próprio casamento de
Montag e Mildred é “de fachada”, desprovido de “verdade”, vazio. Eles sequer se
lembram como se conheceram. Estão, como todos (ou quase todos), presos no Mito
da Caverna de Platão, vendados para o mundo desigual, bélico e ignorante em que
cresceram.
O tema do abuso farmacológico também surge com ênfase, quando Mildred
exagera nos “remédios para dormir” e passa por uma espécie de limpeza
sanguínea, realizada não por médicos, mas por operadores técnicos. Um
indicativo claro de como a saúde, mesmo camuflada por rotinas de frágil
bem-estar, anda abalada, tal como nossa realidade, epidêmica em transtornos
mentais, de depressão e ansiedade, enquanto ostentamos aparências nas redes
sociais.
A censura também é um tema, dentro e fora das páginas da obra. Há duas
décadas da publicação, em 1933, alemães queimaram livros não-condizentes com a
ideologia nazista, em praças públicas. Hoje, como diz Bradbury no CODA da
edição, “existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio
de pessoas carregando fósforos acesos”. O autor, ainda, expressa o quanto
reagiu desgostoso aos editores e minorias que tentaram “rasurar” seus livros,
forçando que suas palavras fossem pressionadas a incorporar aquilo que elas
(não o autor) acreditam. Em outras palavras, censura. Para entender a essência
daquilo que o texto se propõe, não cabe buscar resumos e versões editadas, mas
o livro na íntegra, tal como foi concebido em sua época – mesmo que tenha
envelhecido em determinados pontos.
Até então, Fahrenheit foi adaptado duas vezes às telas de cinema.
Uma em 1966, pelo francês François Truffaut, cofundador da Nouvelle Vague.
Apesar dos efeitos visuais ultrapassados, a estética e a narrativa nos
mergulham na obra-fonte. A outra adaptação, visualmente muito mais moderna, é
de 2018 e dirigida por Ramin Bahrani, mas diverge completamente do título-base,
em muitas cenas. Um bom acerto é a atualização deste, com a incrementação de
livros digitais, os chamados ebooks, e também filmes à lista de produtos
proibidos pelo Estado, tendo em vista que o papel, neste mundo, tornou-se obsoleto.
Pessoalmente, prefiro a versão de Truffaut, ainda que sinta a ausência (nos
dois longas) de elementos muito característicos do original – por exemplo, o
icônico sabujo mecânico e o velho Faber. Bradbury também adaptou o próprio
texto para o teatro, com algumas interessantes modificações, como o destino de
Clarisse, provavelmente muito influenciado pela adaptação cinematográfica
francesa, e novos (brilhantes) monólogos do capitão Beatty – presentes no
posfácio da edição.
Concluindo, acredito que este livro, ou “este grande celeiro, onde está
armazenado o espírito do autor”, como diria o próprio, trata-se de um texto
basilar aos amantes do gênero. Ler Fahrenheit foi sonhar acordado, ser
transportado a um universo tão semelhante, mas também tão distinto, deste em
que vivemos. É pesado, visceral, por vezes enlouquecedor, e também dotado de
belezas ímpares, surgidas de repente. Com a atual Era dos Smartphones,
somos aprisionados por telas – o que me leva a questionar se já vivemos em uma
distopia “futurista”. Portanto, o clássico permanece certeiro, moderno,
relevante, mesmo após longos 70 anos.
Fonte da imagem: bookanalysis.com
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Em seguida, meu resumo
cronológico da história, com spoilers:
Guy Montag, no caminho de volta do quartel de bombeiros, para sua casa,
encontra Clarisse, sua nova vizinha. Eles têm uma conversa descontraída e
estranha aos padrões daquele mundo, com Clarisse se mostrando sempre
interessada, curiosa, eufórica, encantada. Ela quer saber sobre a profissão de
Montag, se ele nunca teve vontade de ler livros e, no fim, se é um homem feliz.
A pergunta abala o bombeiro, que passa dias refletindo sobre a questão.
Enquanto isso, caças-supersônicos rasgam os céus, de hora em hora, prenunciando
a guerra. Em casa, Montag encontra Mildred, sua esposa, desmaiada na cama, após
ingerir uma dose excessiva de remédios para dormir. Montag liga para a
emergência e chama dois operadores técnicos. Os homens chegam, “purificam” o
sangue de Mildred, com uma bugiganga, e vão embora. Nos dias seguintes, Montag
e Clarisse criam um forte laço de amizade, conversando sobre os pequenos prazeres
da vida. Até que um dia, sem explicação, Clarisse desaparece. O bombeiro
continua seu trabalho, atordoado pela ausência, e atende uma denúncia, com o
capitão e seu grupo, para a casa de uma senhora. Livros são achados aos
milhares, jogados ao chão e molhados de querosene. Montag sorrateiramente rouba
um livro, escondendo-o sob o casaco. A dona da casa, que deveria ter sido
retirada e presa pelos policiais, mas não foi, recusa-se a deixar a residência,
acendendo um fósforo e se autoincendiando, junto aos livros. Chegando em casa,
Montag adoece, ficando de cama. Beatty, o capitão, seu chefe, faz-lhe uma
visita e explica sua visão de mundo, onde livros realmente devem ser queimados –
e confessa que Clarisse, por burlar o sistema, está morta. Após Beatty ir
embora, Montag abre a grade do sistema de ar condicionado e retira de lá vários
livros, chocando sua esposa. Ele passa muitas horas lendo o máximo possível.
Sem saber o que fazer, lembra-se do contato de Faber, um velho, que
julgava ser intelectual, amante das leituras, e vai até sua casa. No caminho,
pelo metrô, tenta reter na memória as páginas que leu, mas é como se jogasse
areia na peneira, enquanto uma propaganda de dentifrício insiste em lhe roubar
a atenção. Chegando na casa, conhece Faber, que lhe explica sua visão, em
antítese ao pensamento de Beatty. Ele diz como era o mundo antes dos bombeiros
queimarem livros, antes dos edifícios serem à prova de fogo, e que sua covardia
perante o poderoso Estado não o permite lutar pelas palavras, que tanto ama. No
fim da conversa, Faber entrega uma “radioconcha”, uma espécie de fone de
ouvido, à Montag, para que possam se comunicar à distância. De volta ao lar, o
bombeiro encontra Mildred e seu grupo de amigas igualmente fúteis e ingênuas.
Irritado pelo comportamento delas (e tudo que elas representam), revolta-se,
pega um livro e, na frente de todas, lê um poema. Uma das mulheres chora, as
outras vão embora, transtornadas de raiva. De volta ao quartel, o comportamento
nervoso de Montag chama a atenção, até que a sirene de uma nova denúncia eclode
e os bombeiros saem em disparada, com o caminhão de querosene. Param em frente
à casa de Montag.
Mildred deixa a casa, sem olhar para o marido, e toma um táxi. Guy é obrigado
a queimar seus livros roubados, e aproveita para destruir os próprios móveis,
como uma catarse pelo fogo. Quando Beatty percebe a “radioconcha”, ameaça
localizar Faber. Montag então dispara as chamas em Beatty, matando o chefe, e
desacordando os outros colegas. Neste instante, a sabujo mecânico, com seus
olhos verdes de neon, suas inúmeras patas e uma agulha projetada no
focinho, avança contra o bombeiro, que o destrói em chamas. Montag foge pela
madrugada, encarando as avenidas sombrias da cidade. Carros voadores da polícia
e um novo sabujo são convocados a caçar o fugitivo, em cobertura ao vivo
nos telejornais. Montag vai à casa de Faber, que lhe indica o plano: atravessar
o rio e seguir por suas margens, até encontrar os homens-livro, isolados da
sociedade. Seguindo, o bombeiro corre até o rio, mergulha em suas águas e
despista as câmeras, os policiais e o sabujo. Ocorre, então, uma longa reflexão
poética, com a trama deixando de acelerar. Saindo do rio e caminhando em sua
margem, passa pelo trilho enferrujado do trem, até se deparar com um grupo de
homens, ao redor de uma fogueira: os homens-livro, entre eles, Granger. Cada um
desses homens decorou um livro, para que possam transmitir o conhecimento
oralmente, até que, um dia, seja possível reimprimir cada obra. Uma luz de
esperança, enfim. Ao amanhecer, a grande metrópole, ao longe, explode – e a
guerra se inicia e termina, quase ao mesmo tempo.
Considero um desfecho poético, mas melancólico. Dá um gostinho de “quero
mais”, porém, o lume de esperança ainda deve demorar a crescer e subverter o
Estado. Consigo imaginar Montag e Faber no futuro, como ativistas, lutando pela
liberdade. O final das versões para cinema e teatro trazem um alento: Clarisse ressurge,
viva. Pelo menos nas adaptações de Truffaut e do próprio Bradbury para os
palcos, Montag é recompensado e termina (realmente) feliz.
-
“— Você é um
romântico incurável — disse Faber. — Seria cômico se não fosse trágico.
Não é de livros que você precisa, é de algumas coisas que antigamente estavam
nos livros. As mesmas coisas poderiam estar nas “famílias das paredes”. Os
mesmos detalhes meticulosos, a mesma consciência poderiam ser transmitidos
pelos rádios e televisores, mas não são. Não, não. Absolutamente não são os
livros o que você está procurando! Descubra essa coisa onde puder, nos velhos
discos fonográficos, nos velhos filmes e nos velhos amigos; procure na natureza
e procure em você mesmo. Os livros eram só um tipo de receptáculo onde
armazenávamos muitas coisas que receávamos esquecer. Não há neles nada de
mágico. A magia está apenas no que os livros dizem, no modo como confeccionavam
um traje para nós a partir de retalhos do universo [...]”
// Ray Bradbury, com tradução de Cid Knipel,
in Fahrenheit 451, pp. 107-108.
-
FONTES: RAY,
Bradbury. Fahrenheit 451. Tradução de Cid Knipel. Introdução de Neil Gaiman.
São Paulo: Globo, 2020.
SALEM, Rodrigo. Morre o escritor Ray Bradbury, mestre da ficção científica. In: Folha de S. Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/47337-morre-o-escritor-ray-bradbury-mestre-da-ficcao-cientifica.shtml
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