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quinta-feira, 30 de novembro de 2023

STANLEY KUBRICK: comentando a filmografia completa

 

Análise e comentários:

FILMOGRAFIA DE STANLEY KUBRICK

 

30 de novembro de 2023

Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia


foto: chippu.com.br

 

            Stanley Kubrick, nascido em 1928, nos Estados Unidos, e morto em 1999, foi um dos maiores e mais influentes cineastas da História, tido por muitos como o maior. Reconhecido por seu estilo provocativo, metódico e perfeccionista, com domínio técnico absoluto, adaptou grandes obras da literatura, que se traduziram em clássicos da sétima arte. Pioneiro em efeitos visuais, tendo consultoria da NASA, dirigiu o aclamado 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), com imagens impressionantes de sua reconstrução do espaço. Desde jovem, demonstrou aptidão à fotografia, com publicações na revista Look, além de ter sido um exímio enxadrista, o que o dotou, segundo o próprio, de “paciência e disciplina”, refletindo na construção lenta, mas bem-pensada, de toda sua filmografia.

            Sua obra se constitui de 13 longas-metragens, com início no amador Medo e Desejo (1953), que o próprio Kubrick descartou, pelo resultado, embora já carregue traços do estilo que o consagrou mais tarde. Na sequência, dois filmes influenciados pelo gênero noir, em voga na Hollywood dos anos 50, com O Grande Golpe (1956) elevando o patamar de sua carreira, com um roteiro rebuscado e uma montagem não-linear. Em Glória Feita de Sangue (1957), o diretor lança, enfim, seu primeiro clássico, um marco do cinema antiguerra, com Kirk Douglas no papel principal. A colaboração com Kirk se mantém no premiado épico-histórico Spartacus (1960), mas sela os trabalhos do diretor nos Estados Unidos, por não se contentar com as interferências do estúdio – mudando-se, então, ao Reino Unido, onde passa a produzir suas obras.

            Em solo britânico, conquista o controle absoluto sobre a própria criação, com oito polêmicos e cultuados longas, começando com Lolita (1962), adaptação do controverso romance homônimo. Nessa fase, dirigiu ainda uma sátira de humor ácido, duas ficções científicas (uma espacial, uma política), um drama histórico, passado no século XVIII, um filme de guerra, com traços documentais, e, por fim, um thriller “erótico”, cheio de camadas psicanalíticas. Seus últimos três trabalhos levaram respectivamente cinco, sete e doze anos para serem concluídos, com extensos estudos acerca de cada universo-temático retratado.

            Havia, ainda, um projeto de dirigir um épico sobre Napoleão, quiçá a maior ambição (tendo em vista o volume de anotações) do diretor, que faleceu antes mesmo de iniciar a produção. Outro projeto, sobre um menino-robô, também não chegou a ser concluído, em vida, por Kubrick, mas legado à Steven Spielberg e lançado posteriormente, em 2001, com o título de A.I. - Inteligência Artificial.

            Entre seus temas, a desconfiança e certo pessimismo quanto à natureza humana são recorrentes, com críticas ao absurdo da guerra, por exemplo. O bicho-homem, instintivo, adestrado a se mascarar em sociedade, é destrinchado, dividido em muitas camadas, que geram discussões de ordem sociológica e filosófica. Por isso, geralmente há uma trama superficial, onde os personagens interagem ao ambiente, e um subtexto simbólico, indicando espelhos do comportamento humano – em um retrato perturbador da perversidade de nossa espécie. São filmes que denunciam nossas sombras. Nisso, o fator psicológico é basilar, com constantes gatilhos a desencadear transtornos psíquicos nos personagens, como as diversas facetas do que chamamos de “loucura”.

            O estilo artístico do diretor passa, no ritmo, por uma antecipação estética e atmosférica do que é revelado durante a exibição dos filmes, fazendo com que liguemos pontos distintos do roteiro, ou seja, rimando cinematograficamente, ecoando mensagens. Há uma construção minuciosa de cada linha de diálogo, em sintonia com a unidade da obra, num todo. Embora propositalmente lentos, como (aqui) devem ser, os enredos prendem nossa atenção, em suspenses muitas vezes ininterruptos, costurando os pontos abertos com paciência. Na montagem, planos se alongam, na justíssima medida, especialmente quando as atuações entregam nos detalhes (de uma microexpressão, que seja) aquilo que o filme quer passar. Por exemplo, o olhar desconcertado de Tom Cruise, tornando-se ressentido, em De Olhos Bem Fechados (1999), quando toma consciência da (potencial) infidelidade de sua esposa: o close-up pinta um quadro das emoções do personagem, justificando suas ações durante todo o restante da trama. Os atores, num todo, saltam aos olhos, em closes muitas vezes perturbadores, em performances “teatrais”, impostadas. Tamanho grau de rigor exigiu dedicações hercúleas de toda produção. Kubrick chegou a gravar 148 tomadas (um recorde mundial) de uma mesma cena, em O Iluminado (1980), até que estivesse satisfeito. A atriz Shelley Duvall, do mesmo filme, foi uma das que mais sofreram, repetindo inúmeros planos – o que, propositalmente ou não, acabou elevando a qualidade de sua performance, visto que a personagem deveria, de fato, parecer exausta. Para se ter uma noção, a atriz repetiu a “cena da escada” 127 vezes.¹

            Na fotografia, o design de cada frame aplica conceitos de composição, como o “ponto de fuga”, quando o olhar dos espectadores tende a ser guiado, por meio de linhas, à determinadas áreas de interesse. Kubrick se vale de pesos e contrapesos de imagem, posicionando os elementos em tela, com paletas de cores pré-selecionadas, nos focos de luz que julga ideais, criando auras específicas. Em Barry Lyndon (1975), iluminação natural e velas deram à fotografia um tom pitoresco e etéreo, com o auxílio de lentes encomendadas pela NASA.² Os efeitos visuais, do já citado “2001”, foram tão inovadores que se criou a lenda de que Stanley filmou em estúdio a chegada do primeiro homem à Lua. Realismo que praticamente não envelheceu, mesmo após mais de meio século. Cito, ainda, o uso do zoom-out, com planos fechados, em detalhe, que suavemente vão se abrindo, revelando a complexidade da cenografia.

            No que concerne à trilha sonora, o diretor seleciona, para além das composições originais, músicas clássicas de grandes compositores, como Beethoven, em Laranja Mecânica (1971). Essas trilhas, não raras vezes, são usadas em montagem atonal, isto é, de acordo com a teoria da montagem de Eisenstein, quando tons diferentes contrastam entre si, gerando uma resposta estética específica – no caso, entre o tom sonoro, da música, e o tom visual da sequência. Por isso, há planos aparentemente desconexos com a música, mas que, em conjunto, criam uma atmosfera adequada ao todo da obra, antecipando, por exemplo, o perigo. Essas trilhas, ainda, na repetição, envolvem-nos emocionalmente, como um mantra hipnótico, desenrolando as páginas da trama.

            Pessoalmente, minha experiência com o cineasta se alterou bastante ao passar do tempo. Assisti “2001” e Laranja Mecânica há dez anos, antes de estudar cinema e Filosofia, e não gostei do ritmo (lento) dos longas, muito menos entendi suas propostas. Hoje, com mais bagagem, valorizo cada escolha da direção, nas obras kubrickianas. Diria que apenas seus dois primeiros filmes não são ótimos. Àqueles que, por qualquer motivo, desgostaram de seus clássicos, convido que revisitem sua filmografia, em diferentes estágios da vida. Assim, talvez, possam apreciar a experiência com gosto e olhar mais apurados. Na sequência, deixo minhas análises e comentários sobre cada filme, deste que considero um dos maiores artistas do cinema.

 

Fear and Desire (1953) | Medo e Desejo

Nota pessoal: 6,5 (bom)

Rotten Tomatoes: 71% | IMDb: 5,3/10 | Metacritic: - | Filmow: 2.9/5

 

Comentário: Após caírem de avião, um grupo de quatro soldados acaba perdido em terras inimigas, numa guerra desconhecida. Lá, eles encontram uma camponesa, que os provoca medo – de que ela dedure a posição do grupo ao general da base militar próxima –, e desejo, por sua beleza. O primeiro longa-metragem de Kubrick, apesar do baixo orçamento, demonstra algumas qualidades. Traços estilísticos e temáticos do diretor estão presentes, desde já: construção longamente arquitetada da tensão; close-ups agressivos; e especialmente perfis psicologicamente instáveis. A “loucura”, tão característica nos filmes de Kubrick, é altamente centralizada aqui. Além, é claro, do gênero bélico. Como ponto positivo, ainda há monólogos poéticos muito bem escritos. Porém, é um filme simples demais, experimental e sem grande impacto, o que o torna esquecível.

 

Killer's Kiss (1955) | A Morte Passou Por Perto

Nota pessoal: 7,4 (muito bom)

Rotten Tomatoes: 83% | IMDb: 6,6/10 | Metacritic: - | Filmow: 3.3/5

 

Comentário: Um pugilista se apaixona por uma dançarina noturna, envolvida perigosamente com o próprio patrão. O segundo longa de Kubrick reflete o período de Hollywood nos anos 40 e 50, onde o gênero noir imperava, com sua fotografia em preto-e-branco, altamente contrastada, prevalência da madrugada, com seus painéis luminosos e avenidas movimentadas, trilha sonora jazzística e um profundo sentimento de solidão e amoralidade. Entre os personagens, a femme fatale típica do gênero, aqui, é a dançarina – e sua relação com o ciumento e possessivo patrão. Cito ainda o lutador, protagonista, que vem de uma série de fracassos no ringue e deseja voltar às terras natais, idílicas, no interior do país. Fotograficamente, é uma obra muito bem executada, com longas construções de cena, com capricho particular na sequência de boxe, mas acaba sendo enfadonho, pouco envolvente.

 

Lolita (1962) | Lolita

Nota pessoal: 8,6 (ótimo)

Rotten Tomatoes: 91% | IMDb: 7,5/10 | Metacritic: 79% | Filmow: 3.7/5

 

Comentário: Um professor, Humbert, aluga um quarto, na casa de uma viúva, e acaba desenvolvendo uma obsessão patológica por sua filha adolescente, Lolita. Baseado no controverso romance de Vladimir Nabokov, que também assina o roteiro do longa, acompanhamos o desenrolar da história por meio da narração (não-confiável) do protagonista, com a sequência de abertura, ainda sem contexto, a pôr em tela um assassinato: o professor mata Clare Quilty, um famoso roteirista. Só depois, de fato, iniciamos na trama, que se divide em duas grandes partes: primeiro, focando na relação entre Humbert e Charlotte, mãe de Lolita; depois, entre Humbert e a própria menina. É uma obra cheia de camadas, tendo na superfície um enredo polêmico – de um homem de meia-idade completamente obcecado (de todas as formas) por uma jovem garota. Somos guiados pela mente perturbada, repulsiva, deste homem, que confessa seus desejos reprimidos às páginas de um diário, enquanto move as peças da trama, no nível da consciência, a fim de satisfazer essas querências veladas. No lugar do erotismo, que fica implícito, temos uma discussão mais ampla sobre culpa, obsessão, idealização romântica e desejo de posse.

 

The Killing (1956) | O Grande Golpe

Nota pessoal: 8,9 (ótimo)

Rotten Tomatoes: 96% | IMDb: 7,9/10 | Metacritic: 91% | Filmow: 4.1/5

 

Comentário: Johnny Clay, um ex-presidiário, une-se a um grupo de homens, dos mais variados cargos, em prol da realização de um golpe milionário: roubar e dividir o dinheiro, de milhões de dólares, de um hipódromo de apostas. Baseado em romance de Lionel White, com uma estrutura de montagem não-linear – e uma narração a contextualizar o público, nada acostumado, à época, com este tipo de subversão diegética –, o filme vai encaixando peças de um complexo quebra-cabeça do crime. Passo a passo, vemos o planejamento se efetuar em um tabuleiro de xadrez mortal, onde cada minuto a mais ou a menos pode botar tudo a perder. O nível de tensão permanece alto durante toda a duração do longa, com Kubrick abrindo lentamente cada porta de entendimento. Há muitos elementos de film noir, especialmente na fotografia sombreada; mas, em estrutura narrativa, assemelha-se muito ao que Quentin Tarantino fez nos anos 90, em Pulp Fiction.

 

Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (1964) | Dr. Fantástico

Nota pessoal: 9,2 (excelente)

Rotten Tomatoes: 98% | IMDb: 8,4/10 | Metacritic: 97% | Filmow: 4.2/5

 

Comentário: Durante a Guerra Fria, um general dos Estados Unidos, movido por teorias conspiratórias anticomunistas, ordena um plano de ataque aéreo nuclear coordenado à União Soviética, sem a permissão do presidente. Com essa premissa simples, mas poderosa, este clássico do humor ácido faz uma sátira às políticas e ao militarismo da época. Há um quê de ironia, paranoia e surrealismo, com personagens desajustados e caricatos. Embora a urgência da situação, que, se executada, desencadeará a “máquina do juízo final”, isto é, um mecanismo automático soviético de destruição da vida na Terra, algumas das principais figuras envolvidas na trama não parecem ter qualquer pressa, nem mesmo o presidente – que, ciente do ocorrido, deseja (sem sucesso) cancelar o ataque. Os problemas políticos, que permitiram a execução da ordem do general e sua consequente impossibilidade de cancelamento, são alguns dos principais alvos da crítica, no filme. Como é possível uma única pessoa ter em mãos o poder de causar ou não um apocalipse nuclear? E o que podemos fazer para impedi-la? O absurdo põe em pauta o que a humanidade vivia nas décadas posteriores à queda de Hitler, com uma tensão ininterrupta entre as duas maiores potenciais globais. Destaco Peter Sellers, excelente comediante, que interpreta não menos que três personagens, e a caprichosa fotografia.

 

Spartacus (1960) | Spartacus

Nota pessoal: 9,4 (excelente)

Rotten Tomatoes: 94% | IMDb: 7,9/10 | Metacritic: 87% | Filmow: 4/5

Oscars: melhor fotografia, melhor direção de arte,
melhor figurino e melhor ator coadjuvante (Peter Ustinov).

 

Comentário: Spartacus passou a vida inteira sendo escravizado, até que um lanista o compra e o leva, junto de outros, a ser treinado na arte do combate – tornando-se gladiador. Com seus companheiros, arma uma rebelião e foge, passando a liderar um exército, libertando milhares de escravos pelo caminho e, assim, assustando o poderio militar romano. O grande épico-histórico de Kubrick é seu primeiro longa em cores e traz uma produção megalomaníaca, com cenários riquíssimos e centenas de figurantes. Apesar da violência, o tom da obra é, muitas vezes, romântico, com cenas de humor e poesia. Spartacus cativa, não por ser tão extraordinário em combate (de fato, ele não é), mas por seu idealismo revolucionário e instinto de liderança. O segredo de suas vitórias, é respondido pelo próprio: “A morte é a única liberdade que o escravo conhece. Por isso, não tem medo dela”. Enquanto o homem livre, ao morrer, perde o prazer da existência, o escravo perde as dores da vida. São pesos muito distintos e que, no fim, fazem a diferença no campo de batalha. Todo o núcleo da política de Roma é muito bem atuado, especialmente Laurence Olivier, um dos maiores atores de todos os tempos, no papel do poderoso Marco Licínio Crasso.

 

Barry Lyndon (1975) | Barry Lyndon

Nota pessoal: 9,4 (excelente)

Rotten Tomatoes: 87% | IMDb: 8,1/10 | Metacritic: 89% | Filmow: 4.2/5

Oscars: melhor direção de arte, melhor figurino,
melhor fotografia e melhor trilha sonora.

 

Comentário: No século XVIII, Barry, um jovem e pobre irlandês, após se decepcionar amorosamente com a própria prima, parte à Europa, em plenos anos de Guerra dos Sete Anos, em uma jornada de ascensão e queda. Dividido em duas grandes partes e vencedor de quatro Oscars, o épico-dramático ostenta a melhor fotografia da carreira de Kubrick, com cada frame parecendo um legítimo quadro da época, captado em tecnologia inovadora, consultada pela NASA. Por certo, a iluminação inteiramente natural ou à luz de velas contribui à beleza sublime dos enquadramentos. Usa-se muito o zoom out, isto é, planos fechados que vão se abrindo lentamente, comum na filmografia do diretor, enfatizando primeiro o detalhe e depois os cenários grandiosos. A trilha sonora, por sua vez, unifica diferentes planos em longas sequências hipnóticas, que vão progressivamente nos imergindo na trama. É um filme sobre as possibilidades da vida, sobre como nossas virtudes e vícios nos levam por caminhos tão diversos. Cada instante de tomada de decisão seleciona uma vida inteira, incerta, obscura, pela frente – e mata tudo aquilo que poderia ter sido, e não foi. Ainda que a duração seja realmente longa, superior às três horas, o turbilhão emocional nos envolve do início ao fim.

 

Full Metal Jacket (1987) | Nascido Para Matar

Nota pessoal: 9,6 (excelente)

Rotten Tomatoes: 90% | IMDb: 8,3/10 | Metacritic: 78% | Filmow: 4.3/5

 

Comentário: Recrutas são treinados de forma extremamente sádica pelo sargento Hartman, e depois enviados à Guerra no Vietnã, onde conhecem um horror ainda maior. O penúltimo filme de Kubrick também se divide em duas partes (em certa medida, independentes): na primeira, conhecemos o treinamento militar dos fuzileiros das Forças Armadas estadunidenses, na qual um militar de alta patente humilha e tortura psicologicamente seus subordinados. Nessa parte, somos apresentados aos principais personagens, incluindo J. T. Davis, que narra o filme em tom pessoal, e Leonard Lawrence, que sofre bullying por seu sobrepeso e falta de habilidades físicas. O palavreado utilizado durante todo o período de preparação é o mais chulo possível, com os piores xingamentos que alguém poderia receber – ainda por cima, aos berros. Na segunda metade, os fuzileiros, então formados, são levados ao Vietnã, em um cenário de pobreza, prostituição e escombros. O tom, nessa parte, é quase documental, com Davis e seu fotógrafo registrando depoimentos das tropas, como jornalistas, e vivenciando o caos da guerra. Fica claro ainda o enfoque no fracasso militar das estratégias norte-americanas e superioridade dos vietcongues. A câmera, durante todo longa, busca a perfeição de enquadramentos, valendo-se especialmente de diagonais, contrapesos de cores e luzes e movimentos suaves, sempre em atenção à pluralidade dos elementos em tela. Há detalhes complexos de composição mesmo em segundo e terceiro planos. Sobre a mensagem, o cineasta joga seus holofotes no processo de brutalização bélica do homem, transformado em máquina de matar – podendo até enlouquecer. Diria também que, no texto e subtexto, o sexismo perpassa a discussão do roteiro, com a figura feminina desumanizada, reduzida à invólucro sexual, até à virada de chave no derradeiro clímax.

 

Paths of Glory (1957) | Glória Feita de Sangue

Nota pessoal: 9,8 (excelente)

Rotten Tomatoes: 96% | IMDb: 8,4/10 | Metacritic: 90% | Filmow: 4.4/5

 

Comentário: Durante a Primeira Guerra Mundial, o alto-comando militar francês ordena que batalhões, alocados em trincheiras, tomem dos alemães uma colina, chamada de “Formigueiro”. Porém, trata-se de uma missão impossível e, portanto, suicida. Quando parte dos soldados se recusa a avançar, três deles, representando os demais, são posteriormente acusados e julgados pelo crime de covardia. Há muitas camadas, aqui. Sem dúvida, a discussão mais central é a política, onde generais, vivendo em luxo, decidem a vida de tropas inteiras – tidas como descartáveis. Mortes que, no fundo, só lustram os egos dos poderosos e não servem, na prática, nem de exemplo. A razão não impera na guerra, nem entre os indivíduos de uma mesma nação, sobressaindo-se (tão acima) as hierarquias de poder. Kubrick foca o tema, amplia e se demora, destacando claramente sua mensagem. Trabalha-se, ainda, o medo da morte, a mentira, a fé e a desobediência moral. A sequência da tentativa de avanço francês, em campo de batalha, é infernal, com hordas a morrer em vão, e outras tantas apavoradas, nas trincheiras – toma uma pequena fatia da montagem, que usa a maior parte de sua duração a se concentrar em diálogos, no julgamento e suas repercussões. Uma obra, sobretudo, antiguerra. Destaco a eloquente atuação de Kirk Douglas e a sublime cena da jovem alemã na taverna, forçada a cantar, chorando, aos bêbados soldados franceses.

 

A Clockwork Orange (1971) | Laranja Mecânica

Nota pessoal: 9,9 (excelente)

Rotten Tomatoes: 87% | IMDb: 8,3/10 | Metacritic: 77% | Filmow: 4.3/5

 

Comentário: No futuro, a sociedade inglesa é assolada por gangues de jovens delinquentes que praticam a chamada ultraviolência, entre elas, o grupo de Alex e seus drugues. Quando um de seus planos dá errado, Alex vai preso e passa por um experimento de condicionamento psicológico, a Técnica Ludovico, a fim de ser curado de sua sociopatia. Polêmico, muitas vezes censurado, e brutal, o longa baseado em livro homônimo de Anthony Burgess apresenta uma estética retrofuturista, com singulares arquitetura, figurino e design de produção, onde as cidades são multicoloridas e a pornografia ocupa os espaços de arte e decoração. O estilo kubrickiano é total, com seu habitual absurdismo, atuações em êxtase (de ódio, por exemplo), longos planos de conjunto e poucos cortes. Narrado em primeira pessoa pelo próprio Alex, o protagonista, somos conduzidos por uma trama sem freios morais, com cenas de abuso explícito. A violência nos enoja, causa repulsa – e assim deve ser, para que nossas reflexões sobre o futuro de Alex causem algum efeito. Com a introdução da Técnica Ludovico, somos questionados sobre livre-arbítrio e natureza humana, poder estatal e consequencialismo moral. Até onde o Estado pode condicionar detentos em nome de um bem-estar coletivo? Haveria cura para a ultraviolência? No embate, filosofias, ciências, religiões e políticas disputam o discurso e os corpos, neste cenário (no mínimo) perturbador criado pelo cineasta.

Eyes Wide Shut (1999) | De Olhos Bem Fechados

Nota pessoal: 10 (perfeito)

Rotten Tomatoes: 76% | IMDb: 7,5/10 | Metacritic: 69% | Filmow: 3.9/5

 

Comentário: Após sua esposa lhe contar que já teve vontade de traí-lo com outro homem, um médico sai pelas ruas noturnas de Nova Iorque, em época natalina, numa jornada de descoberta da própria fidelidade e seus desejos sensuais mais íntimos. Demasiadamente subestimado, o derradeiro trabalho de Kubrick é, ao meu ver, perfeito. Cada não-corte, cada segundo estendendo as cenas, extrai o máximo de significados possíveis, em especial pelas brilhantes atuações de Tom Cruise e Nicole Kidman. O cineasta avança o longa delicadamente, sem pressa, como as páginas de um livro, permitindo que o suspense e os mistérios fisguem nossa atenção, até o minuto final. Há diversas camadas psicanalíticas aqui: na superfície, usamos máscaras sociais, ostentando status, aparências, posições de poder e dinheiro, mesmo em papeis de marido e esposa. Porém, no íntimo, nossos desejos instintivos e emoções, para além das convenções sociais, fogem do nosso autocontrole. Quando esses desejos (“proibidos” de emergir) são verbalizados, nossos mitos (como o próprio casamento) entram em xeque. Afinal, mesmo unido em matrimônio, o casal não deixa de sentir atração por outras pessoas. Outro ponto interessante está no conceito de fidelidade, que pode se alterar caso a “traição” seja apenas em forma de sonhos (reprimidos e, por isso, indicando querências reais) ou mesmo pensamentos conscientes. O Natal, que ilustra boa parte da onírica fotografia, com muitos pisca-piscas, aparece como símbolo do capitalismo e materialização de desejos. No todo, este thriller erótico, recheado de nudez e voyerismo, carrega subtextos gritantes, provocando inúmeros tabus da sexualidade humana.

 

The Shining (1980) | O Iluminado

Nota pessoal: 10 (perfeito)

Rotten Tomatoes: 83% | IMDb: 8,4/10 | Metacritic: 66% | Filmow: 4.3/5

 

Comentário: Jack, com antecedentes de alcoolismo, é contratado como zelador do famoso Hotel Overlook, onde pretende escrever um livro, durante um inverno rigoroso e nevado, residindo durante longas semanas apenas com sua esposa e seu filho “iluminado”, que possui sentidos sobrenaturais. Fortemente criticado em sua estreia, até mesmo por Stephen King, cujo romance homônimo serviu de base à Kubrick, o filme ganhou status de obra-prima do terror psicológico ao longo das décadas. Com o auxílio da trilha sonora, a tensão é constante, mesmo em planos aparentemente inofensivos. Constrói-se, na antecipação, uma atmosfera diabólica, como quando Danny, filho de Jack, pedala em seu triciclo, por cômodos e corredores desertos, numa das cenas mais clássicas do cinema. É dito que o hotel fora erguido onde jaz um cemitério indígena, e que povos nativos da região lutaram contra sua construção – sendo, pelo que se indica, assassinados. Assim, o imenso edifício carrega o sangue (e a maldição) dessas antigas tribos. Esses fantasmas, reais ou imaginários, aliados ao ambiente depressivo e solitário, atiçam as tendências alcoólatras (e violentas) de Jack, puxando-o à loucura. A atuação de Jack Nicholson é aterradora. No subtexto, o hotel é uma variável do mundo real aos gatilhos que desencadeiam o lado mais sombrio das pessoas, tornando-as irreconhecíveis e mesmo perigosas. Portanto, há a trama superficial, onde as peças se movem, e a camada metafórica, psicológica. Outro charme, na fotografia da obra, é o uso da Steadicam, pioneiro, tornando suave e bem-controlado o movimento de câmera.

 

2001: A Space Odyssey (1968) | 2001: Uma Odisseia no Espaço

Nota pessoal: 10 (perfeito)

Rotten Tomatoes: 92% | IMDb: 8,3/10 | Metacritic: 84% | Filmow: 4.2/5

Oscar: melhores efeitos visuais.

 

Comentário: Após um monólito negro surgir entre um grupo de australopitecos, isto é, nossos ancestrais, há milhões de anos, uma ideia lhes surge à mente: “e se começássemos a usar ferramentas?” De ossos, para bater e matar, passamos a instrumentos muito mais complexos, como naves espaciais. No ano de 2001, o mesmo (ou outro) monólito é encontrado, enterrado na Lua. Por certo, propositalmente, para que a humanidade, em avançado grau de evolução, pudesse descobri-lo. A obra-prima de Kubrick – e da ficção-científica, no geral – intriga e fascina, com uma estética sublime e mensagens filosóficas enigmáticas. O ritmo, na maior parte do longa, é extremamente lento, com pouquíssimos diálogos, deixando que o espetáculo audiovisual fale por si. No lugar de explicações verbais, temos signos abstratos ou mesmo um balé de satélites no espaço, como quando toca Danúbio Azul. Outro destaque da trilha sonora é Assim Falou Zaratustra, de Richard Strauss, a simbolizar a subida de degrau na escala da evolução humana, em paralelo ao livro de Nietzche. Há ainda sons assombrosos, com um coral macabro, criando uma atmosfera de puríssimo terror. “Personificando” este medo, temos o vilão, uma inteligência artificial chamada HAL 9000, que “não comete erros”. A elipse, que marca o corte seco do osso pré-histórico à nave espacial, no primeiro ato, é a maior da História do cinema, temporal e simbolicamente, pelo poder metafórico: é como se um único corte ilustrasse aonde a “ferramenta” nos levou. A dúvida, sobre a função que desempenha o misterioso monólito, é aparentemente clara: empurrar-nos evolutivamente. Porém, quem são (e como se comportam) as entidades que o construíram, permanece uma incógnita.

 

 

 

Filmografia completa do diretor:

 

1999 – Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados)

1987 – Full Metal Jacket (Nascido Para Matar)

1980 – The Shining (O Iluminado)

1975 – Barry Lyndon (Barry Lyndon)

1971 – A Clockwork Orange (Laranja Mecânica)

1968 – 2001: A Space Odyssey (2001: Uma Odisseia no Espaço)

1964 – Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb (Dr. Fantástico)

1962Lolita (Lolita)

1960 – Spartacus (Spartacus)

1957 – Paths of Glory (Glória Feita de Sangue)

1956 – The Killing (O Grande Golpe)

1955 – Killer's Kiss (A Morte Passou Por Perto)

1953 – Fear and Desire (Medo e Desejo)

 

 

FONTES: todos os filmes acima, em negrito;

Os vídeos, no YouTube: “STANLEY KUBRICK”, do Canal CINEMARDEN; “Como Stanley Kubrick Faz Um Filme!”, do Canal Gustavo Cruz; “Como Stanley Kubrick fazia seus filmes”, do Canal Gaveta; “Por que O ILUMINADO é bom? - Super Vale Crítica Especial (desvendando os segredos)”, do Canal Super 8; “O primeiro, segundo e terceiro atos de 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968)”, do Canal Elegante.

Rotten Tomatoes; IMDb; Metacritic; Filmow; Wikipédia.

¹ “This Iconic Stanley Kubrick Scene Took 148 Takes to Get Right”, de Lloyd Farley, pela Collider:

collider.com/stanley-kubrick-the-shining-scene-guinness-world-record/

² “O que torna Stanley Kubrick um eterno gênio do cinema?”, de Vitória Campos, pela Rolling Stone Brasil:

rollingstone.uol.com.br/noticia/o-que-torna-stanley-kubrick-um-eterno-genio-do-cinema-lista/

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