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segunda-feira, 10 de maio de 2021

RESENHA: O Olho Mais Azul (de Toni Morrison)

 

Resenha de:

O OLHO MAIS AZUL

DE TONI MORRISON

 

10 de maio de 2021

Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia


Artwork by Elizabeth Lada

 

           O Olho Mais Azul, publicado em 1970, é o romance de estreia da escritora norte-americana Toni Morrison, nascida em 1931 na cidade de Lorain, Ohio, e morta em 2019. O livro se divide em quatro capítulos, Outono, Inverno, Primavera e Verão, além de posfácio da autora. Em cada “estação”, vamos conhecendo um pouco das personagens próximas de nossa protagonista, Pecola Breedlove. Ela, porém, aparece pouco. Podemos, ainda assim, considera-la o centro da história, pois tudo gira em torno dela. Pecola é uma menina afrodescendente, no início da puberdade, que vive em extrema pobreza com os pais, violentos, e o irmão mais velho. O mundo, em todo canto, insiste em rotular sua aparência negra como feia. Ela, então, deseja que seus olhos sejam azuis – os mais azuis possíveis, pois acredita que, somente assim, a sociedade a aceitará e verá beleza nela. A autora, com isso, desenvolve temas complexos, como Estética, racismo estrutural e abuso.

            No que se refere à autora, Toni Morrison ganhou o Nobel de Literatura em 1993, a primeira e única mulher negra a ter conquistado o prêmio, que é a maior honraria do mundo no que se refere ao meio literário. Ela é considerada uma das maiores escritoras estadunidenses das últimas décadas e aborda frequentemente a condição feminina e étnica. Sua obra mais conhecida se chama Amada (1987), que chegou a ganhar o Prêmio Pulitzer de Ficção. Para a atual resenha, vali-me da tradução de Manoel Paulo Ferreira.

            O livro começa com uma pequena narrativa infantil, que descreve uma casa e a família feliz que mora lá. Parece um texto primário, feito para crianças no intuito de alfabetizar. O texto se repete, então, sem vírgulas, pontos ou letras maiúsculas. E novamente, sem espaços entre as letras. É um início caótico. Na abertura de cada capítulo, há fragmentos dessa introdução, para que não nos esqueçamos. Como um mantra. Pode-se interpretar essa imparidade mais pela forma do que pelo conteúdo. A forma remete ao mundo de uma criança. Um mundo que se desestabiliza progressivamente e segue para a desordem. O conteúdo expõe o padrão de felicidade que a sociedade considera ideal, bem diferente da realidade de grande parte das famílias negras americanas.

            Na sequência, entramos, de fato, na história. Assim como Hibisco Roxo, da escritora nigeriana Chimamanda Adichie, também resenhado aqui no blog, somos levados, primeiramente, ao fim da narrativa. Quem narra, é uma menina chamada Claudia, que conviveu com Pecola durante o período em que se passa o livro. Começa assim: “Cá entre nós, não houve cravos-de-defunto no outono de 1941. Na época pensamos que era porque Pecola ia ter o bebê do pai dela que os cravos-de-defunto não cresceram”. Há simbolismos fortíssimos aí. O “cá entre nós” é bem explorado no posfácio e traz o caráter de segredo compartilhado. Qual segredo? A atrocidade descrita: uma criança engravidada pelo próprio pai. Os cravos-de-defunto não brotaram por causa do solo ruim, assim como as pessoas negras não prosperavam por causa de outro “solo ruim”, o racismo estruturado na sociedade estadunidense daquela época – e, em muita medida, até hoje. É a metáfora mais poderosa do livro. Pecola, uma menina tão retraída, vulnerável, mas cheia de sonhos, não floresceu naquele mundo. O “solo ruim” não permitiu. Essa é a ideia substancial, que sustenta os quatro capítulos da obra.

Nos capítulos, entramos profundamente nas vidas das personagens. Claudia, que narra boa parte da história, também é uma pré-adolescente negra, mas bem diferente de Pecola. Pecola é introvertida e desenvolveu seus ideais estéticos por meio da cultura dos homens brancos. Como dito, ela sonha em ter olhos azuis. Claudia, por outro lado, possui uma estrutura familiar razoável, é extrovertida e autêntica. Claudia adora destruir as bonecas brancas que ganha de presente: “Eu ficava enojada e secretamente assustada com aqueles olhos redondos imbecis, a cara de panqueca e o cabelo de minhocas alaranjadas”. Ao invés de beleza, via estranhamento nessas bonecas. Estranhamento autêntico, pois não se identificava com aqueles traços e aquelas cores. Uma autoestima que não se deixa pautar pelos padrões estéticos impostos pelos brancos. Frieda é irmã de Claudia. Ela demonstra determinação e coragem, sempre acompanhando a irmã nas aventuras. Os pais delas aparecem pouco, quase sempre em segundo plano. Eles adotam Pecola por um tempo, pois a família dela era desleixada e não se importava com a filha.

Pauline Breedlove é a mãe de Pecola. Sua história é narrada detalhadamente, desde a infância. Essa é outra característica muito forte do livro: as digressões que Morrison faz para explicar os porquês do comportamento de suas personagens. Por que Pauline trata a própria filha de forma tão bruta? Por que ela não chega em um acordo de paz com o marido? Entendemos quem ela se tornou por meio de suas experiências, seus traumas. A personagem se transforma com o tempo. De início, as digressões se movem tanto no passado que não conseguimos identificar quem é. Por vezes, somos apresentados a novos personagens; em outras ocasiões, aprofundamo-nos em quem já foi introduzido na história. É o caso de Pauline – e Cholly, pai de seus filhos. No começo, os dois eram um casal feliz e apaixonado. Como a relação se descarrilhou? A autora mostra como Pauline passou a internalizar os valores e normas dos brancos ao frequentar o cinema, por exemplo. Os filmes, dirigidos por brancos, pautaram boa parte de seus desejos. Depois, ela se tornou empregada de uma família branca e abastada economicamente. Era notável a imensa disparidade entre o tratamento que ela dispunha aos patrões brancos com a forma que tratava a própria família negra. Com os brancos, Pauline era amorosa e prestativa. Com seus filhos e marido, era rude e os tratava com desprezo. Isso demonstra como até mesmo os negros, imersos em uma cultura racista, perpetuam (ainda que inconscientemente) o preconceito. Cholly, o pai, também tem seu passado revelado. Abandonado ainda bebê pela mãe e criado pela tia-avó, sem conhecer nem o próprio pai, a criança cresceu assombrada por traumas. Por exemplo: dois homens brancos o humilharam e o intimaram a abusar de uma menina. Mais crescido, tentou conhecer o pai pessoalmente, que o rechaçou. Essas feridas foram transformando Cholly em um adulto brutalizado, alcóolatra e criminoso. Pauline o vê como uma cruz, alguém que legitima suas penitências religiosas. Há uma rede complexa de explicações psicológicas por trás de cada personagem. Os pais desajustados de Pecola são, assim, entendidos e humanizados, mas não justificados. Eles contribuíram no apagamento da filha. Pior, o pai a engravidou. A culpa, antes de qualquer individualidade, recai na cultura, no solo podre que torna possível essas tragédias familiares.

O irmão mais velho de Pecola, Sam, é descrito minimamente. Sabe-se apenas que ele vive fugindo de casa. Há também três prostitutas, que vivem acima da casa dos Breedlove. Elas são umas das raras pessoas que não veem Pecola com inferioridade, sendo sempre gentis com a menina. Maureen Peal é uma colega de classe de Pecola. Ela é parda e possui olhos verdes, recebendo tratamento diferenciado de todos – a própria acaba se vendo como superior, acima dos outros afrodescendentes. O mesmo ocorre com Geraldine, parda, que despreza os negros retintos e deposita todo seu amor e carinho em seu gato de estimação. O filho de Geraldine cresce ressentido, vendo a mãe amá-lo menos que ao gato. Ele se torna um garoto cheio de ódio, cruel. É muito forte a presença dessa distinção cultural, entre negros retintos e negros de pele parda. Os pardos se veem superiores. Os mais negros, por sua vez, assumem uma inferioridade (estética, moral etc.) que todos os meios lhes atribuem. É algo enraizado.

Elihue Whitcomb, mais conhecido como Soaphead Church, é outro personagem importante na trajetória infeliz de Pecola. Nas digressões, entendemos seu passado e sua personalidade. De pele parda e autodeclarado misantropo (quem tem aversão às pessoas), ele tem a sexualidade reprimida e, por isso, distorcida. Sua relação com Deus e a religião também é um ponto de destaque dentro do livro. Na história, acabou se tornando um charlatão, que “resolve qualquer problema” e interpreta os sonhos das pessoas. Certo dia, Pecola foi até ele, na esperança de conseguir, enfim, seus tão desejados olhos azuis. Ele, pensativo, pede que a menina dê um pedaço de carne ao cachorro que descansava no alpendre. Se algo estranho ocorresse, segundo ele, a garota teria seus olhos azuis. Ela dá a carne ao cão e, sem saber, envenena-o. Assustada, sai correndo. Esse fato terá consequências no final da história.

Apesar de cenas terríveis – as mais pesadas que li na vida –, a autora consegue trazer poesia em muitos momentos. Ela descreve os acontecimentos com uma delicadeza profunda, metáforas poéticas e um polimento ímpar. É, ao mesmo tempo, uma leitura desconfortável, incômoda, devido ao peso de seus temas, e deliciosa pelas descrições. Somos levados por aromas, cores e formas que nos transportam para a Ohio, mesma cidade natal da autora, do início dos anos 40, época em que os Estados Unidos ingressavam na Segunda Guerra Mundial. Há o nosso extremo pesar diante da vulnerabilidade de Pecola, que desperta os mais variados sentimentos no leitor, mas também a força de Claudia, que não se curva para os padrões sociais.

Foi uma experiência de leitura bem mista, mas confesso que o resultado final é aterrador. É um livro que nos obriga a escarar aquilo que a sociedade historicamente ignora. E faz isso de uma forma intensa e dolorosa. Tanto que o livro chegou a ser banido de escolas. Aprendemos muito durante a leitura, enquanto encarnamos desde as crianças inocentes até os adultos traumatizados. Saímos da última página comovidos, provavelmente devastados, destruídos, porém, mais conscientes.  


CONTÊM SPOILERS: No final do livro, depois que a gente junta os cacos de Pecola, espalhados pela visão de outros personagens, entramos em um diálogo desafiador. Duas meninas conversam. Uma delas tem olhos azuis, a outra não – e, por isso, sente inveja. No início, não sabemos quem são, nem o contexto, nem os cenários. Não há descrições, apenas as falas das duas. Então descobrimos que estamos, enfim, na mente de Pecola, pela primeira vez. A sentença do charlatão, aliada às violências estética, sexual e social, fragmentaram a menina: ela enlouqueceu. Em sua mente, acredita fielmente possuir olhos azuis. Na vida real, por outro lado, tornou-se catadora de lixo, abandonada por tudo e por todos. Seu filho, fruto dos abusos cometidos pelo pai, não conseguiu sobreviver. Pecola, com tanto potencial para florescer na vida, não conseguiu brotar naquele solo ruim, racista e sexista. Culparam-na pelo estupro. Sobrou-lhe a loucura e a miséria. Nisso, até quem lhe tinha proximidade, afastou-se. Final duríssimo, cru e (pavorosamente) realista.


Toni Morrison, a autora. Foto por: Timothy Greenfield-Sanders / Magnolia Pictures


FONTES: MORRISON, Toni. O Olho Mais Azul. Tradução de Manoel Paulo Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SOUZA, Jaiane. O olho mais azul, de Toni Morrison: o fim da infância na América racista. In: culturadoria. 23 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://culturadoria.com.br/o-olho-mais-azul-de-toni-morrison-olhos-que-condenam/

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