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domingo, 28 de junho de 2020

RESENHA: Hibisco Roxo (de Chimamanda Ngozi Adichie)


Resenha de:
HIBISCO ROXO
ESCRITO POR CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE

28 de junho de 2020
Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia

Purple Hibiscus, por Lizzy Stewart in abouttoday.co.uk/2017-Reads
 
           Hibisco Roxo, publicado pela primeira vez em 2003, é o primeiro romance da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Em suas mais de trezentas páginas, o livro nos coloca dentro de um recorte da vida de uma adolescente rica, de família ultraconservadora, que vive na Nigéria. Com isso, a autora aborda temas espinhosos, duros, como o colonialismo cultural, a intolerância religiosa, a política repressora/ditatorial de seu país e a violência doméstica. Porém, diria que, sobretudo, trata-se de uma história de transformação, de passagem de um estado de silenciamento e opressão à liberdade.
Com uma narrativa não-linear, a obra divide-se em quatro partes. No prólogo, chamado “Quebrando Deuses: Domingo de Ramos”, conhecemos Kambili e sua família, em estado de tensão. Essa parte situa-se perto do final do livro. Ou seja, começamos a leitura no que posso chamar de pré-clímax. Na sequência, o capítulo “Falando com Nossos Espíritos: Antes do Domingo de Ramos”, que constitui a “poupa” do livro, com mais de 240 páginas. Aqui, a trama se desenvolve e, de fato, ganha forma. Somos levados ao início da narrativa, ao passado, até chegar no Domingo de Ramos. Posteriormente, há mais dois capítulos: “Os Pedaços de Deuses: Após o Domingo de Ramos”, onde, diria, há o clímax, e “Um Silêncio Diferente: O Presente”, que serve de epílogo. Os subcapítulos, por sua vez, não têm título.
Para a presente resenha, fiz uso da tradução de Julia Romeu, na quinta reimpressão pela Companhia das Letras. Digo, pois considero e valorizo o trabalho de tradução, que influencia diretamente na experiência do leitor com a obra.
No que se refere à autora, Chimamanda já publicou três romances: Hibisco Roxo (2003), Meio Sol Amarelo (2006) e Americanah (2013), além de um livro de contos protagonizados por mulheres e tratados acerca do feminismo. Ela é uma feminista reconhecida mundialmente, tendo realizado notáveis palestras. Na Nigéria, estudou Medicina e Farmácia; nos Estados Unidos, onde vive, estudou Comunicação e Ciências Políticas. Essa transição entre os dois países influencia diretamente em sua arte. Na América, ainda, mestreou-se em escrita criativa e arte em estudos africanos. Seus livros foram traduzidos para mais de trinta idiomas.
“Hibisco” é narrado em primeira pessoa pela protagonista, Kambili. É como se mergulhássemos nas lembranças, no passado da jovem. Há uma mistura entre o idioma basilar – no caso da tradução, o português – e dialeto igbo, natural dos povos nigerianos, o que pode dificultar um pouco a compreensão de determinados termos. Isso acaba nos contextualizando regularmente, não permitindo que esqueçamos que a história se passa no interior de um país africano. Chimamanda trabalha o mundo interior e o mundo exterior da personagem. Por fora, Kambili é tímida, silenciosa, insegura, às vezes praticamente invisível. Por dentro, ela é intensa, criativa, apaixonada e altamente sensível. A autora se vale da poesia, com metáforas, para ilustrar o que sua personagem sente; ela pinta toda uma atmosfera de emoções, ambientando a trama com descrições fortíssimas do céu, das flores e do meio urbano. “Vemos” uma Nigéria tal como ela é, tropical, bem quente, onde o harmattan, soprando os ares do Saara, impregna-se nos horizontes. O meio cultural nigeriano também é descrito, com os contrastes religiosos – principalmente, entre o catolicismo e as religiões tradicionais do continente. Nisso, temos acesso às manifestações dessa cultura religiosa (riquíssima, diga-se de passagem). Conhecemos também, por meio das descrições da autora, parte dos costumes gastronômicos (destacados em todos os capítulos) e a moda nigeriana, com suas cangas e lenços coloridos.
Kambili vive com seu irmão Jaja, também adolescente, e seus pais, Eugene e Beatrice. Eles formam uma família de classe alta (provavelmente milionários, visto que o pai é dono de algumas grandes empresas alimentícias e de imprensa) e seguem o catolicismo de forma rigorosa – devido à imposição do pai. Esposa, filha e filho são constantemente punidos toda vez que cometem algum “pecado” (em sentido religioso ou mesmo social, quando os filhos não conseguem tirar as melhores notas da turma, por exemplo). A punição chega ao nível da tortura, física e psicológica. A coerção é tão intensa que parece enraizada no inconsciente da família. Digo, pois Kambili evita até mesmo pensar em “errar”; ou seja, até mesmo seus pensamentos, ocultos ao pai, estão de certa forma “adestrados”. Jaja, assim como sua irmã, parece desregulado pela violência doméstica. Porém, há um germe de revolta em seu peito, diferentemente de Kambili, mais acomodada. Beatrice, a mãe, parece quase sempre em transe; ela também é silenciada regularmente e submissa ao patriarca. Eugene, por sua vez, é um homem claramente violento, ainda que mascare seu lado sombrio com a religiosidade e a filantropia. Ele ajuda financeiramente a Igreja e a população pobre. É um homem respeitado, admirado no meio social.
Enquanto isso, a Nigéria sofre um golpe militar e adentra em uma ditadura. O contexto político traduz muito do período em que se passa o livro. Há uma desigualdade social tremenda: poucas famílias em acúmulo excessivo de riquezas, como a de Kambili, e a maioria pobre. A instabilidade política clareia-se nas dificuldades com o saneamento básico e combustível, por exemplo, em boa parcela da população.
Contrastando a família de Eugene, conhecemos os primos de Kambili. Tia Ifeoma é uma mulher forte, decidida, “com presença”; ela é viúva e leciona na Universidade da Nigéria. Amaka é sua filha mais velha, que gosta de ouvir bandas populares e parece nutrir certo ressentimento pelos mais ricos. Obiora é o segundo filho, inteligente, contestador, líder-nato, com seus inseparáveis óculos. Há ainda o Chima, ainda criança e sem uma personalidade muito bem formada. A família, apesar de enfrentar dificuldades econômicas, é bem unida, sorri, festeja, aproveita a vida. Quando Eugene permite que Kambili e Jaja passem alguns dias com os primos, algo começa a florescer dentro deles.
Outro personagem importante é o padre Amadi, amigo da família de tia Ifeoma. O jovem sacerdote é atlético, cantor e gosta de levar Amaka e seus irmãos para passear. Kambili fica cativada (para dizer o mínimo) por ele, que move boa parte dos anseios mais íntimos da garota. Papa-Nnukwu é avô da protagonista e pai de Eugene. Ele é um idoso tradicionalista, praticante dos ritos da cultura originária do país – por este motivo, seu filho o evita, chamando-o de pagão e o associando ao pecado. Sua figura simboliza o caráter nigeriano puro, imune à pressão colonial inglesa. Ade Coker, por sua vez, é o redator-chefe do jornal que pertence à Eugene. Ele representa a luta pela liberdade de imprensa no seio de uma ditadura.
O hibisco roxo do título é uma planta de rara beleza – tia Ifeoma possui um. Quando os irmãos passam a temporada com a tia, Jaja traz uma mudinha de hibisco roxo para sua casa (e, junto, carrega um desejo arrebatador em seu coração). Talvez a planta represente todos os valores de liberdade – e felicidade – que rondam o lar dos primos. Tudo o que é nela simbolizado pode remediar os males da família de Kambili, começando pela intolerância/imposição religiosa, onde Eugene busca se espelhar na cultura dos brancos colonizadores e renega, censura com veemência, tudo o que lhe é contrário. Enquanto ele, Eugene, luta pela livre expressão de seu veículo de imprensa, acaba sendo déspota dentro da própria casa.
No geral, a experiência com o livro, que recebi de presente do professor Maurilio Camello durante meu período de graduação, foi muito prazerosa, imersiva e curiosa, permitindo que eu abrisse um mundo cultural quase que inteiramente novo, visto que pouco nos chega da Nigéria – e países africanos no geral, infelizmente. Foi uma experiência parecida com o romance Jornada Sob o Véu, de Shirley Palmer, onde pude “visitar” um país com uma cultura bem diferente da nossa, a saber, a Arábia Saudita. É uma leitura que nos enriquece enquanto cidadãos do mundo, que nos coloca a par das contradições que habitam o seio de sociedades tão diferentes, mas que compartilham de certos problemas aparentemente universais. É uma viagem de cores, flores e sabores, como de socos na boca do estômago. Há belezas e incômodos, ainda que propositais, dissabores. Recomendo a todos que desejam descortinar um drama de temas pesados, violentos, mas que se faz em linguagem sensível, terna, poética.


Chimamanda Ngozi Adichie, a autora:

Fonte da imagem: bbc.com/news/world-africa-37676472
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CONTÊM SPOILERS: O clímax do livro se dá por uma reviravolta. Enquanto Kambili nada sabia, sua mãe e seu irmão arquitetavam um plano de envenenamento do patriarca da família. Quando Eugene morre, Jaja confessa o crime e é preso. A mãe, por outro lado, é desacreditada, pois todos pensam que ela só pretende assumir a culpa para poder livrar o filho. Não fica claro se os dois trabalharam juntos no plano, mas subentende-se que a mãe passou, com o tempo, a envenenar o chá do marido, enquanto o filho lhe deu veneno de rato. O assassinato, de início, parece naturalmente uma retaliação do governo, que havia matado o editor do jornal de Eugene, Ade Coker, e movia-se para silenciar todos que se impunham ao regime. A revelação do real assassino é bombástica e nos leva a pensar nas similitudes entre a ditadura nigeriana, em macroestrutura, e a “ditadura familiar”, na microestrutura. Apesar do choque, o livro termina, em sua última página, com um frescor, tendo passado alguns anos do incidente: Kambili planeja viajar com a mãe para os Estados Unidos, que é para onde tia Ifeoma e os primos haviam se mudado. E Jaja será solto. Os planos para o futuro dão um ar de otimismo e frescor. Sentimos que os grilhões da jovem enfim se despedaçaram.


FONTES: ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. Tradução de Julia Romeu. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
SANTANA, Rafael Barbosa de Jesus. A Nigéria Personificada em Personagens: Interpretações sobre o Contexto Nigeriano Através das(os) Personagens do Romance Hibisco Roxo: Laboratório de Estudos em História e Literatura da Unipampa (online). Disponível em < sites.unipampa.edu.br/lehl/2018/09/13/a-nigeria-personificada-em-personagens-rafael-barbosa/>. Acesso em 27 de junho de 2020.

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