Resenha de:
ELOGIO DA LOUCURA
DE ERASMO DE ROTERDÃ
4 de maio de 2025
Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia
Elogio
da Loucura,
escrito pelo filósofo renascentista holandês Erasmo de Roterdã, é
um ensaio filosófico satírico de grande influência no pensamento
moderno, influenciando a Reforça Protestante, com suas críticas aos
costumes, principalmente à Igreja Católica. No livro, Erasmo elenca
a deusa Loucura como persona,
comunicando seu pensamento de modo irônico, por meio das falas (em
primeira pessoa) da deusa. Escrito em prosa corrida, sem divisão
capitular, no ano de 1509 – e publicado em 1511, durante o
Renascimento, que buscou revitalizar valores da Grécia Antiga, como
a referência aos deuses do Olimpo, seu título é uma alusão à
Loucura, enquanto divindade e aquilo que ela representa, a
“desrazão”, como um autoelogio, tendo em vista que a deusa
argumenta em prol da importância de si mesma para o bem-estar da
humanidade.
Erasmo,
nascido em Roterdã, nos Países Baixos, no ano de 1465, e morto na
cidade de Basileia, em 1536, travou amizade com grandes
personalidades de seu tempo, como bispos e filósofos, incluindo
Thomas Morus, outro grande pensador renascentista, autor d’A
Utopia,
a quem dedicou o Elogio
da Loucura,
em seu prefácio, sob a justificativa de que Morus remete à Moria,
loucura em grego – o que é curioso, já que o amigo nada tem de
louco (ou teria, no conceito vigente do livro?). Pela proximidade com
a marquesa de Nassau, Ana de Brosselen, na Holanda, pôde ser
apadrinhado em suas viagens de estudo pela Europa, doutorando-se na
Universidade de Bolonha, Itália. Dominava o latim e foi ordenado
padre em 1492; porém, passou a criticar os vícios do catolicismo,
sem contudo romper de todo com este, buscando reformar a igreja. Suas
ideias, por isso, acabaram influenciando a posterior Reforma
Protestante, iniciada por Lutero, mas sem também aderir a esta. Para
ele, a Filosofia é o conhecimento sapiencial da vida, sobretudo das
práticas cristãs originárias, que se situam bem distantes da
corrupção e ostentação religiosas de sua época e das
“complicações” filosóficas erigidas nos últimos séculos.
Nisso, ele se volta às origens do cristianismo e busca um
renascimento desse período.
No
Elogio
da Loucura,
Erasmo se vale de uma personagem, a Loucura, divindade feminina grega
(como
Parmênides e Boécio fizeram no passado, com outras deusas),
para comunicar seu pensamento, tal
um monólogo de frente a um auditório, em uma sátira divertida,
ácida, repleta de sarcasmo e referências literárias e mitológicas.
Para a Loucura, a desrazão acompanha a humanidade desde sempre, dos
piores aos melhores momentos, afastando-nos da tristeza. A verdade
dói, por isso os homens se embriagam de loucura, para suportar (e
aproveitar) a vida. Os sábios, nesse sentido, privados de ilusões,
acabam se tornando amargurados e alheios ao convívio social. Os
estoicos, que não se permitem serem arrebatados por suas paixões,
seguindo friamente a razão, são, assim, atacados pela Loucura. Você
quer a felicidade? Pois se afaste da sensatez, eis a tese. Por outro
lado, Diógenes
de Sinope, um filósofo considerado louco, que andava nu pelas ruas
da Grécia, é estimado. De
acordo com a deusa, somente ela alegra homens e deuses com seus
favores divinos, tornando-os felizes.
Filha
de Plutão, deus das riquezas (e do submundo),
com a alegre
e bela ninfa
Neotetes, a
Loucura é o resultado das negociações, geradoras de riquezas, com
a alegria, tendo sido amamentada pelas ninfas Mete (embriaguez) e
Apédia (ignorância). Outras ninfas de sua companhia são as
referentes ao amor-próprio, adulação, esquecimento,
preguiça,
volúpia, irreflexão e lascívia,
além de dois deuses, um dos risos (e do prazer da mesa) e um do sono
profundo. Com
este séquito, ela exerce seus poderes sobre os entes vivos da Terra,
sem precisar que a cultuem, pois seu amor-próprio basta a si mesma.
Segundo
ela, a loucura preserva a vida e gera prazeres, ao contrário da
sabedoria, geradora
de tristeza. O próprio amor, que faz brotar a vida, nasce da
irreflexão, pois é preciso ser louco para aceitar viver o
matrimônio, que poda as nossas liberdades. Infância e velhice, para
ela, são as fases mais loucas, quando temos menos acesso à
sabedoria – vide os idosos que, quanto mais parecidos com as
crianças, mais descompromissados com a racionalidade. Em determinado
trecho, a Loucura se vangloria de ter influenciado a criação da
mulher, tida como essencialmente louca, fora da sabedoria, bela e
alegre, mas também inepta e estúpida. É, sem
dúvida,
misógino, mas a ironia da proposição se
faz assim:
para ela, essas características femininas são boas, pois
as paixões (e não a razão) é que nos vicejam. Certamente, o tom
de sátira, em busca do riso, evocando sempre
a imagem de Demócrito, célebre por seu estereótipo risonho e
debochado, permite o chiste, mas não deixa de reproduzir o machismo
da época, pois parte do pressuposto
de que a razão (mesmo ironicamente) é própria ao sexo masculino.
Quando
se trata de criticar os maus costumes, como a desrazão dos bélicos,
gananciosos e hipócritas, o autor se vale de
sarcasmo,
revelando o absurdo do comportamento humano, com a Loucura pontuando
o quão longe cada qual está da sabedoria – e
isso, para ela, é um mérito de sua influência. Todo tipo de gente
acaba sendo alvo da chacota, como príncipes, comerciantes, teólogos
e filósofos.
Porém,
por vezes, a “loucura” não é vista pelo prisma irônico, mas
teológico, como a “loucura da Cruz”, definida por são Paulo,
onde a própria fé é vista como contrária à razão, e portanto
louca, mas de modo desejável e até sublime. Nas palavras da própria
Loucura: “Por fim, está claro que os loucos mais frenéticos são
precisamente aqueles que são finalmente aferrados por inteiro pelo
ardor da piedade cristã: sinal manifesto disso é a dissipação que
fazem de seus bens, o desconhecimento das ofensas, a resignação aos
enganos, a não distinção entre amigos e inimigos (...). Ora, o que
é isso senão loucura?” Esse jogo entre o ironismo e a verdade
talvez seja o principal atrativo estilístico do livro, não havendo
divisão clara durante
a obra.
Para
além da loucura condenável
e da loucura divina, desejável, Giovanni Reale, em sua História
da Filosofia,
aponta uma terceira função: mostrar que somos constantemente
ludibriados por ilusões. Por baixo da máscara de um rei, ou seja,
das ilusões a que os súditos creem, há um homem comum, muitas
vezes detestável. É a loucura que nos afasta da razão e nos faz
encarnar os personagens do Theatrum
Mundi.
Nesse sentido, a Loucura se faz filosófica, afastando a bruma que
nos separa da verdade, em uma postura que permanece
surpreendentemente moderna.
Desemaranhar
o texto, subtraindo-lhe o sarcasmo, seria fazê-lo perder a graça,
aquilo que o torna único. Não há uma única definição de
loucura, no livro, que possa abranger nossos divergentes juízos
morais acerca do conceito. Se é uma loucura boa ou má, vai depender
do nosso grau de concordância e da ironia do autor. Nisso, pode-se
dizer os mais altos absurdos, bem como as mais profundas verdades.
ROTERDÃ, Erasmo de. Elogio da Loucura. Narrado por Lana Harari (audiolivro), disponível na Audible, pela Universidade Falada.
ROTERDÃ, Erasmo de. Elogio da Loucura. Tradução de Deocleciano Torrieri Guimarães. São Paulo: Rideel, 2003.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Do Humanismo a Kant. São Paulo: Paulus, 1990, p.98-103.
Filosofia e Literatura em “O Elogio da Cultura”, do canal Grilo Falante (no YouTube).
Leitura de Vassoler: Elogio da loucura | Erasmo de Roterdã, do canal Flávio Ricardo Vassoler (no YouTube).
ELOGIO DA LOUCURA, Erasmo de Roterdã | EFF, do canal Filosofares - Bruno Neppo (no YouTube).
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