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sexta-feira, 2 de maio de 2025

RESENHA: Elogio da Loucura (de Erasmo de Roterdã)


Resenha de:

ELOGIO DA LOUCURA

DE ERASMO DE ROTERDÃ


4 de maio de 2025

Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia


Navio dos Loucos, por Hieronymus Bosch, c.1490. 


       Elogio da Loucura, escrito pelo filósofo renascentista holandês Erasmo de Roterdã, é um ensaio filosófico satírico de grande influência no pensamento moderno, influenciando a Reforça Protestante, com suas críticas aos costumes, principalmente à Igreja Católica. No livro, Erasmo elenca a deusa Loucura como persona, comunicando seu pensamento de modo irônico, por meio das falas (em primeira pessoa) da deusa. Escrito em prosa corrida, sem divisão capitular, no ano de 1509 – e publicado em 1511, durante o Renascimento, que buscou revitalizar valores da Grécia Antiga, como a referência aos deuses do Olimpo, seu título é uma alusão à Loucura, enquanto divindade e aquilo que ela representa, a “desrazão”, como um autoelogio, tendo em vista que a deusa argumenta em prol da importância de si mesma para o bem-estar da humanidade.
       Erasmo, nascido em Roterdã, nos Países Baixos, no ano de 1465, e morto na cidade de Basileia, em 1536, travou amizade com grandes personalidades de seu tempo, como bispos e filósofos, incluindo Thomas Morus, outro grande pensador renascentista, autor d’A Utopia, a quem dedicou o Elogio da Loucura, em seu prefácio, sob a justificativa de que Morus remete à Moria, loucura em grego – o que é curioso, já que o amigo nada tem de louco (ou teria, no conceito vigente do livro?). Pela proximidade com a marquesa de Nassau, Ana de Brosselen, na Holanda, pôde ser apadrinhado em suas viagens de estudo pela Europa, doutorando-se na Universidade de Bolonha, Itália. Dominava o latim e foi ordenado padre em 1492; porém, passou a criticar os vícios do catolicismo, sem contudo romper de todo com este, buscando reformar a igreja. Suas ideias, por isso, acabaram influenciando a posterior Reforma Protestante, iniciada por Lutero, mas sem também aderir a esta. Para ele, a Filosofia é o conhecimento sapiencial da vida, sobretudo das práticas cristãs originárias, que se situam bem distantes da corrupção e ostentação religiosas de sua época e das “complicações” filosóficas erigidas nos últimos séculos. Nisso, ele se volta às origens do cristianismo e busca um renascimento desse período.
       No Elogio da Loucura, Erasmo se vale de uma personagem, a Loucura, divindade feminina grega (como Parmênides e Boécio fizeram no passado, com outras deusas), para comunicar seu pensamento, tal um monólogo de frente a um auditório, em uma sátira divertida, ácida, repleta de sarcasmo e referências literárias e mitológicas. Para a Loucura, a desrazão acompanha a humanidade desde sempre, dos piores aos melhores momentos, afastando-nos da tristeza. A verdade dói, por isso os homens se embriagam de loucura, para suportar (e aproveitar) a vida. Os sábios, nesse sentido, privados de ilusões, acabam se tornando amargurados e alheios ao convívio social. Os estoicos, que não se permitem serem arrebatados por suas paixões, seguindo friamente a razão, são, assim, atacados pela Loucura. Você quer a felicidade? Pois se afaste da sensatez, eis a tese. Por outro lado, Diógenes de Sinope, um filósofo considerado louco, que andava nu pelas ruas da Grécia, é estimado. De acordo com a deusa, somente ela alegra homens e deuses com seus favores divinos, tornando-os felizes.
       Filha de Plutão, deus das riquezas (e do submundo), com a alegre e bela ninfa Neotetes, a Loucura é o resultado das negociações, geradoras de riquezas, com a alegria, tendo sido amamentada pelas ninfas Mete (embriaguez) e Apédia (ignorância). Outras ninfas de sua companhia são as referentes ao amor-próprio, adulação, esquecimento, preguiça, volúpia, irreflexão e lascívia, além de dois deuses, um dos risos (e do prazer da mesa) e um do sono profundo. Com este séquito, ela exerce seus poderes sobre os entes vivos da Terra, sem precisar que a cultuem, pois seu amor-próprio basta a si mesma. Segundo ela, a loucura preserva a vida e gera prazeres, ao contrário da sabedoria, geradora de tristeza. O próprio amor, que faz brotar a vida, nasce da irreflexão, pois é preciso ser louco para aceitar viver o matrimônio, que poda as nossas liberdades. Infância e velhice, para ela, são as fases mais loucas, quando temos menos acesso à sabedoria – vide os idosos que, quanto mais parecidos com as crianças, mais descompromissados com a racionalidade. Em determinado trecho, a Loucura se vangloria de ter influenciado a criação da mulher, tida como essencialmente louca, fora da sabedoria, bela e alegre, mas também inepta e estúpida. É, sem dúvida, misógino, mas a ironia da proposição se faz assim: para ela, essas características femininas são boas, pois as paixões (e não a razão) é que nos vicejam. Certamente, o tom de sátira, em busca do riso, evocando sempre a imagem de Demócrito, célebre por seu estereótipo risonho e debochado, permite o chiste, mas não deixa de reproduzir o machismo da época, pois parte do pressuposto de que a razão (mesmo ironicamente) é própria ao sexo masculino. Quando se trata de criticar os maus costumes, como a desrazão dos bélicos, gananciosos e hipócritas, o autor se vale de sarcasmo, revelando o absurdo do comportamento humano, com a Loucura pontuando o quão longe cada qual está da sabedoria – e isso, para ela, é um mérito de sua influência. Todo tipo de gente acaba sendo alvo da chacota, como príncipes, comerciantes, teólogos e filósofos.
       Porém, por vezes, a “loucura” não é vista pelo prisma irônico, mas teológico, como a “loucura da Cruz”, definida por são Paulo, onde a própria fé é vista como contrária à razão, e portanto louca, mas de modo desejável e até sublime. Nas palavras da própria Loucura: “Por fim, está claro que os loucos mais frenéticos são precisamente aqueles que são finalmente aferrados por inteiro pelo ardor da piedade cristã: sinal manifesto disso é a dissipação que fazem de seus bens, o desconhecimento das ofensas, a resignação aos enganos, a não distinção entre amigos e inimigos (...). Ora, o que é isso senão loucura?” Esse jogo entre o ironismo e a verdade talvez seja o principal atrativo estilístico do livro, não havendo divisão clara durante a obra.
       Para além da loucura condenável e da loucura divina, desejável, Giovanni Reale, em sua História da Filosofia, aponta uma terceira função: mostrar que somos constantemente ludibriados por ilusões. Por baixo da máscara de um rei, ou seja, das ilusões a que os súditos creem, há um homem comum, muitas vezes detestável. É a loucura que nos afasta da razão e nos faz encarnar os personagens do Theatrum Mundi. Nesse sentido, a Loucura se faz filosófica, afastando a bruma que nos separa da verdade, em uma postura que permanece surpreendentemente moderna.
       Desemaranhar o texto, subtraindo-lhe o sarcasmo, seria fazê-lo perder a graça, aquilo que o torna único. Não há uma única definição de loucura, no livro, que possa abranger nossos divergentes juízos morais acerca do conceito. Se é uma loucura boa ou má, vai depender do nosso grau de concordância e da ironia do autor. Nisso, pode-se dizer os mais altos absurdos, bem como as mais profundas verdades.


FONTES:
ROTERDÃ, Erasmo de. Elogio da Loucura. Narrado por Lana Harari (audiolivro), disponível na Audible, pela Universidade Falada.
ROTERDÃ, Erasmo de. Elogio da Loucura. Tradução de Deocleciano Torrieri Guimarães. São Paulo: Rideel, 2003.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Do Humanismo a Kant. São Paulo: Paulus, 1990, p.98-103.
Filosofia e Literatura em “O Elogio da Cultura”, do canal Grilo Falante (no YouTube).
Leitura de Vassoler: Elogio da loucura | Erasmo de Roterdã, do canal Flávio Ricardo Vassoler (no YouTube).
ELOGIO DA LOUCURA, Erasmo de Roterdã | EFF, do canal Filosofares - Bruno Neppo (no YouTube).

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