Resenha de:
A DIVINA COMÉDIA
ESCRITO POR
DANTE ALIGHIERI
3 de agosto de 2020
Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia
“Dante olha em direção ao Purgatório”, por Agnolo Bronzino, 1530.
A Divina Comédia é uma narrativa poética escrita pelo poeta italiano Dante Alighieri entre 1308 e 1321. Trata-se de um dos maiores clássicos da literatura mundial, tendo influenciado radicalmente o meio cultural de todo ocidente, sobretudo a Itália, berço do autor. O idioma florentino, original da obra, foi, inclusive, adotado/oficializado pelo país, quando este se unificou, tornando-se desde então o conhecido idioma italiano, ainda que tenha sofrido algumas modificações para se tornar o que conhecemos hoje. A ideia que, atualmente, temos de Inferno, Purgatório e Paraíso passa pela influência d’A Divina Comédia, que se baseou nas escrituras bíblicas, textos filosóficos e teológicos, onde se inclui o pagão Aristóteles e o cristão Tomás de Aquino, e modelos vigentes à época, como a cosmologia ptolomaica. O texto original se faz em versos, com um determinado padrão de rimas, portanto, trata-se de um imenso e épico poema, ainda que narre linearmente acontecimentos, como um romance. Nisso, pode facilmente ultrapassar 700 páginas; porém, há também versões em prosa moderna, onde o leitor tem a oportunidade de acompanhar a história por meio de parágrafos. Eu li integralmente a versão em prosa, na tradução de Hernâni Donato – que também assina o prefácio e 570 notas de rodapé, que são essenciais ao entendimento do livro. Li também, por ocasião de uma apresentação na faculdade, o Inferno traduzido por José Pedro Xavier Pinheiro, em versos. São duas experiências distintas, mas igualmente ricas e memoráveis. Originalmente, a obra chamava-se apenas Comédia, no sentido aristotélico, a saber, “de algo que acaba bem” – o oposto da tragédia e, portanto, sem o sentido moderno, que remete ao caráter humorístico. O “acréscimo divino” ao título se deve à Giovanni Boccaccio, especialista em Dante e autor do Decamerão.
O livro, narrado em primeira pessoa, divide-se em três grandes partes: Inferno, Purgatório e Paraíso. Cada uma dessas partes contém 33 cantos, que seriam uma espécie de subcapítulo, com exceção do Inferno, que possui 1 canto extra (a introdução do livro), totalizando 100 cantos. Curiosamente, todas as três partes terminam com a palavra “estrelas”. O auxílio de notas explicativas, como dito, é fundamental, pois há centenas de personagens e simbolismos de árdua compreensão. É preciso recordar que estamos falando de uma obra do início do século XIV, em uma Idade Média crepuscular. Dante “coloca” em seu poema, seja pagando por pecados ou recebendo a glória por virtudes, pessoas que ele conheceu pessoalmente. Há ainda figuras históricas, como imperadores, papas, santos e filósofos, e personagens e criaturas mitológicas.
Outro ponto de relevância, para se ter em mente antes de iniciar a leitura, é o modelo geocêntrico de Ptolomeu, ou seja, a concepção cosmológica que entende a Terra, imóvel, no centro do Universo. A entrada para o Inferno fica dentro de uma caverna, em uma “floresta tenebrosa”, localizada em Jerusalém. Tal caminho, pelas vias infernais, descendo em círculos, leva até o centro do planeta, onde habita Lúcifer. Continuando, é possível sair do outro lado do mundo, na antípoda de Jerusalém, onde há uma ilha, cercada por infindável oceano, e uma única montanha colossal ao centro, que é o Purgatório. Ao subir pela montanha, também composta em círculos ou “andares”, encontra-se a porta de São Pedro, guardada por um anjo. Dentro, há um andar para cada pecado capital, até chegar ao topo da montanha-Purgatório, que marca o Jardim do Éden, lar da lendária árvore do Bem e do Mal, que aparece no Gênesis de Adão e Eva. Somente aqui é possível ascender aos Céus, formados por Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno, Estrelas Fixas e, enfim, o Primum Mobile. Além do plano físico, há o Empíreo, a morada divina. Do Empíreo, Deus move o Primum Mobile, que move as demais esferas consecutivamente. Observe a ilustração de Michelangelo Caetani:
“Figura Universale Della Divina Commedia”, por Michelangelo Caetani, 1855.
A história se passa na quinta-feira
santa do ano de 1300 e termina na quinta da semana seguinte. Acontece dez anos
após a morte precoce de Beatriz, amor platônico de Dante, que a admirava desde
os tempos de meninice. Segundo consta, eles nunca tiveram um caso, mesmo assim
ela é figura central do poema. Desde sua morte, Dante, que é autor e
protagonista, viveu em perdição, entregando-se ao pecado. Beatriz, no Paraíso,
vendo o estado deplorável do poeta na Terra, pede, com o auxílio de Santa Lúcia
e de Nossa Senhora, que o espírito do poeta romano Virgílio, autor da Eneida
e que reside no Limbo, busque Dante e o leve para conhecer o destino das almas,
do Inferno ao Paraíso terrestre. Seu intuito é livrar o amigo de um destino
terrível após a morte. Ela espera que o poeta fique impressionado com tudo aquilo
e, enfim, tome uma direção virtuosa, longe do pecado, enquanto ainda há tempo.
Nisso se baseia o poema. É uma grande viagem, de uma semana, que parte da Terra
até chegar em Deus.
No que concerne ao autor, Dante
Alighieri, ele é considerado o maior poeta italiano, fazendo parte do “panteão”
de maiores autores da literatura ocidental, ao lado de Sófocles, Shakespeare,
Cervantes e Dostoiévski, diria. Nascido em Florença em 1265 e morto em 1321,
foi um dos últimos templários, político e escritor, sendo A Divina Comédia
a sua maior obra, que serviu de base para o idioma italiano moderno – na época,
a Itália era formada por nações independentes, com vários dialetos, incluindo o
florentino, de Florença e Dante. Seu poder poético é inquestionável, haja visto
o esplendor técnico/metodológico e criativo de sua obra-prima. Gênio absoluto,
Dante era de família guelfa. Na época, guelfos (defensores do poder papal) e
gibelinos (partidários da política “terrena”) guerreavam pelo controle das
cidades italianas. Os guelfos acabaram vitoriosos, mas, depois, dividiram-se em
duas facções igualmente opostas: guelfos negros e guelfos brancos. Os guelfos
negros, por serem próximos do papa, levaram vantagem e exilaram os guelfos
brancos, onde se inclui Dante. Muitos outros foram mortos. Exilado, o poeta
nunca voltou à Florença, perdendo o contato com a família – ele tinha esposa e
filhos –, além de sua propriedade, passando a viver desde então na casa de
amigos, pela Itália.
O ressentimento que sentiu ao perder
tudo que lhe era tão valioso fez Dante se vingar de seus malfeitores – e
glorificar seus benfeitores – por meio da poesia. Suas desavenças foram parar
no Inferno d’A Divina Comédia, enquanto seus amigos e pessoas que ele
tanto admirava foram parar próximos à Deus. Por isso, há centenas de
personagens no poema, que identificam o poeta como estando vivo por ostentar
sombra, enquanto eles, os mortos, perderam-na. Esses personagens conversam com
Dante, enquanto ele caminha ao lado de Virgílio – e, depois, de Beatriz, no Paraíso
–, explicando questões históricas, como intrigas políticas, e dúvidas metafísicas/teológicas.
Nisso, reside o valor filosófico da obra, que apresenta os princípios do
cristianismo medievo. As preferências políticas do poeta ficam claras quando
ele cita Henrique VII como fonte de esperança na prosperidade de sua nação – e critica
arduamente o papa Clemente V. Vale destacar que o autor mistura conceitos
cristãos com paganismo, pois também se vale de muitos mitos de origem grega,
por exemplo.
Dante conduz o leitor fazendo uso
constante de poderosas metáforas, comparando, por exemplo, o movimento dos
pássaros ou elementos da natureza para expressar seus estados de espírito. Do
ponto de vista psicológico, a obra consegue ser deveras interessante, visto que
retrata, com riqueza de detalhes, as reações de um mortal em vias extraordinárias,
lidando com os mistérios mais sublimes da natureza humana. Os símbolos também são
vários, retratando, muitas vezes, a Igreja (católica, obviamente, tendo em
mente que ainda não havia protestantismo na Europa).
Virgílio, o guia de Dante através do
Inferno e do Purgatório, pode representar a racionalidade humana, tendo em
vista que a razão nos guia pelos trajetos da vida e nos obriga a enfrentar os
monstros que aparecem em nosso caminho. É uma atitude ativa, de deslocamento, que
expressa um modo de pensar humanista/moderno, que veio a surgir na Europa
poucas décadas após Dante. Valoriza-se a palavra, remete-se às origens (os
mitos que fundam a cultura ocidental estão implícitos) e deseja-se renovação – Dante
faz sua peregrinação como forma de purgar os erros e de se nortear pelas
virtudes. Beatriz, diferentemente de Virgílio, pode representar a fé e a
Teologia, por isso é ela quem guia o poeta no Paraíso, onde a razão não alcança.
A esperança é outro tema central. No Inferno, ela não existe; sendo lugar de
repetição e dor infinita. No Purgatório, ela é a chave essencial que leva aos prometidos
Céus. Essas reflexões foram maturadas em aula do professor Silvio Costa, na
disciplina de História da Filosofia Moderna I da Faculdade Dehoniana.
Pessoalmente, minha experiência com o
clássico foi de arrebatamento e êxtase profundo em determinados cantos, especialmente
o final. Só tive dificuldade em imergir na história nos momentos em que os
diálogos se articulam em particularidades do autor e do contexto político, bem
distante da nossa época. A linguagem é complicada, mas pode ser destravada pelo
auxílio das notas explicativas. Comecei a ler a obra em 2017, na graduação em
Filosofia, quando adaptei o Inferno para os nossos tempos – no intuito de apresentar
uma encenação, com meus colegas. Parei, ainda àquele ano, para priorizar outros
projetos. Continuei mês passado, seguindo até o fim.
Fonte da imagem: blog.poemese.com/como-ler-a-divina-comedia-sem-surtar
Em seguida, apresento
meu resumo comentado dos círculos das três partes da obra, contendo, obviamente,
spoilers.
RESUMO COM SPOILERS:
O livro começa com Dante aos 35
anos, ou seja, na metade de sua vida, em densa floresta de Jerusalém. Ele está
perdido, desnorteado pelo pecado. É quando aparecem três feras a bloquear sua
passagem (assim como, em vida, os guelfos negros impediram o poeta de voltar à
Florença): uma pantera (ou leopardo), um leão e uma loba. Beatriz, então, envia
Virgílio para salvá-lo – corporalmente, das feras, e espiritualmente, dos
pecados –, iniciando a peregrinação dos dois por Inferno e Purgatório. As
razões foram expostas na introdução da resenha. Entrando em uma caverna, chegam
aos portões do Inferno, onde está escrito: “Deixai aqui todas as esperanças,
ó vós que entrai”. Dentro, chega-se no vestíbulo infernal, para onde vão os
anjos indecisos e as almas covardes que não se decidiram pela via do bem, nem
pela via do mal. Em filas, são forçadas a perseguir rápidas bandeiras
ambulantes, enquanto são picadas por vespas e grandes moscas, além de terem
vermes nos pés. Adiante, há o rio Aqueronte, onde Caronte transporta os mortos
em seu barco até o primeiro nível do Inferno, que é estruturado em nove
círculos. Os condenados são impedidos de transitar entre um andar e outro, a
não ser quando recebem ordens divinas. Outra característica é a Lei do Contrapasso,
que pune os mortos na proporção e na ideia oposta aos seus pecados na Terra.
Limbo – primeiro círculo infernal:
é o maior sítio das profundezas, para onde vão as almas virtuosas que não podem
conhecer o Paraíso, pois não foram batizadas ou não conheceram Cristo, como as
crianças e os antigos pagãos. O próprio Virgílio mora aqui. Outros habitantes
ilustres são Aristóteles, Sócrates e Homero. Noé, Abraão e Adão, por outro
lado, estiveram ali, mas foram alçados aos Céus por Cristo. Lá não há
sofrimento, a não ser a desesperança por não poderem subir ao Paraíso e ver
Deus. No limbo ainda há um enorme castelo, com sete muralhas.
Segundo círculo infernal: nos
primeiros andares, são castigadas as almas daqueles que, em vida, não souberam
controlar os impulsos. São os pecados mais leves. Após o limpo, Dante e
Virgílio encontram Minós, o juiz do Inferno. Minós ouve as confissões dos
mortos, que não mentem, pois perderam o livre-arbítrio que tinham em vida, e
enrola os condenados em sua grande cauda, girando-os em número proporcional ao
círculo infernal para onde serão confinados. Ainda neste círculo, sofrem os
luxuriosos, arremessados uns contra os outros por incessante ventania. Cleópatra
está lá.
Terceiro círculo infernal: é onde
são penalizados os gulosos, encharcados por uma imparável e suja chuva de
granizo, enquanto são estraçalhados por Cérbero, o cão mitológico de três cabeças.
Quarto círculo infernal: entre
montanhas, os avarentos e pródigos, ou seja, os “pães-duros” e quem gastou
dinheiro demais, são forçados e empurrar pesadas pedras, além de se colidirem.
Para descer ao próximo círculo, deve-se passar pelo rio Estige.
Quinto círculo infernal: no rio,
de lama, Flégias leva os dois poetas em seu barco. Dentro do rio, são punidos
os irascíveis, que se batem mutuamente. Os rancorosos que nunca sequer
externaram sua ira ficam submersos, sendo possível ver apenas as bolhas de ar
que sobem à superfície.
Sexto círculo infernal: daqui em
diante, são punidos os pecados mais graves, cometidos conscientemente, sem arrependimento.
Na entrada, situa-se os portões da cidade de Dite, com suas muralhas de ferro e
fogo, guardadas por milhares de “anjos caídos”. Nas torres, estão três Fúrias e
a Medusa. A princípio, a entrada do barco de Flégias é retida, mas um anjo
desce dos Céus e abre a passagem. Dentro da cidade, há um imenso cemitério,
onde os hereges, como os ateus, queimam em túmulos abertos. Cada túmulo comporta
mais de mil condenados.
Sétimo círculo infernal: é
dividido em três vales, onde jazem os violentos. No primeiro vale, há o rio
Flegetonte, feito de sangue fervente. Nele, estão os que praticaram violência
contra os outros e seus bens – quanto pior a violência, mais imersos no sangue.
Enquanto isso, centauros atiram flechas nos condenados. O Minotauro está na
margem no rio. No segundo vale, os suicidas são transformados em árvores secas
e retorcidas, bicados e sangrados por Harpias. Quem praticou violência contra
os próprios bens também está aqui, sendo dilacerado por cães raivosos. No
terceiro vale, um deserto de areia, onde chove fogo. Aqui, são punidos os
espíritos que praticaram violência contra Deus e sua obra, a Arte e a Natureza.
Uns deitados, outros sentados, outros correndo. Isso depende da gravidade da violência
cometida. Para atravessar o rio de sangue e descer até o próximo círculo, é
preciso montar e voar no dorso do monstro Gerião, de cabeça de homem, cauda de
cobra e tronco/garras de fera.
Oitavo círculo infernal: chamado
de Malebolge, o andar é composto por dez profundos fossos, onde se
atravessa pelo intermédio de pontes. Tudo feito de pedra. Nos fossos, são
punidos os que cometeram fraude/enganação. No primeiro, os alcoviteiros, que
controlam as paixões alheias para o próprio benefício, são chicoteados por demônios;
no segundo, os aduladores, que enganam os outros por meio de falsos raciocínios,
são imersos em fezes; no terceiro, os simoníacos, que traficam favores/objetos
sagrados, como sacramentos, são enterrados de cabeça para baixo, com as pernas em
chamas; no quarto, os adivinhos têm a cabeça torcida para trás, chorando sobre
as próprias nádegas; no quinto, os trapaceiros/corruptos são imersos em piche
fervente e torturados por demônios – é dito, aqui, que uma das pontes desmoronou
quando Cristo, aos 34 anos, entregou-se à morte na cruz; no sexto, hipócritas
vestem douradas capas, pesadas como chumbo; no sétimo, ladrões são picados por
serpentes e répteis, que roubam seus corpos e os desintegram para, em seguida, voltarem
das cinzas e sofrerem novamente; no oitavo, os maus conselheiros, que levam os
outros às ruínas, são banhados à lava, fogo e raios; no nono, os semeadores de
discórdias religiosas/sociais/familiares são mutilados pela espada de um
demônio, expondo suas tripas; no décimo e último fosso, os falsificadores
apodrecem por doenças/pestes.
Nono círculo infernal: em
seguida, Dante e Virgílio passam por gigantes. Um desses gigantes os ajuda,
pegando-os e colocando-os no último círculo do Inferno, situado no centro da Terra,
onde há o lago congelado chamado Cocito, formado pelas lágrimas dos condenados.
O lago é formado por quatro círculos/esferas e pune os traidores. Na primeira
esfera, os traidores familiares estão presos no gelo do peito para baixo; na
segunda, os traidores políticos ficam presos do pescoço para baixo; no
terceiro, quem traiu os próprios hóspedes tem unicamente o rosto descoberto
pelo gelo, chorando lágrimas congeladas. Na última esfera, quem traiu seus
senhores/mestres/benfeitores estão completamente submersos no gelo.
Seguindo, os dois poetas sentem
uma forte ventania e se deparam com Lúcifer, um enorme monstro a bater suas
asas de morcego, seu corpo peludo e três cabeças. Nas bocas das duas cabeças
laterais, Brutus e Cassius, os dois traidores do imperador Júlio César; na
cabeça central, Judas Iscariotes, traidor de Cristo. Os três são mastigados
eternamente por Lúcifer. Saltando pelas costas do monstro, Dante e Virgílio seguem
por um caminho até o outro lado do planeta, na antípoda de Jerusalém,
Hemisfério Sul.
Ilustração do Inferno de Dante, por Gustave Doré.
Os dois poetas contemplam,
finalmente, após três dias de caminhada, a luz solar. Eles veem uma única ilha,
cercada por interminável oceano, com uma montanha descomunal ao centro. Eis o
Purgatório. Nas praias da ilha, encontram Catão, o velho zelador do local, e
veem um anjo guiando um barco cheio de almas na direção da montanha. Os
excomungados arrependidos circundam a montanha 30 vezes o tempo em que negaram
a Igreja, no primeiro círculo ou Vale dos Excomungados. Após esse tempo,
poderão entrar no Purgatório. O segundo círculo ou Vale dos Príncipes ainda faz
parte do Antepurgatório e recebe os negligentes, que demoraram a se arrepender
de seus pecados, por preocupações mundanas ou preguiça. Alguns se arrependeram
no instante da própria morte. Ao anoitecer, Dante e seu guia adormecem, pois é
proibido caminhar durante a noite. É quando surge a serpente a pregar tentações
aos espíritos. Fato curioso: as orações dos vivos reduzem a espera dos mortos na
montanha, acelerando o encontro dos pecadores com Deus.
Baixo Purgatório: no terceiro andar
do monte, há a Porta de São Pedro, que dá acesso ao Purgatório propriamente
dito. Na entrada, um anjo a guardar a porta permite a passagem dos poetas, que
avançam por três degraus (um branco, um preto e um vermelho). O anjo ainda marca
a letra “P” sete vezes na testa do mortal Dante. As letras vão sumindo à medida
que o caminhante sobe o monte. Após a porta, existem sete círculos – um para
cada pecado capital, além do Jardim do Éden, no topo. Quanto mais alto, mais
leve o pecado – no Inferno, quanto mais baixo, mais pesado/grave era o pecado. No
primeiro círculo, os soberbos/orgulhosos carregam pesadas pedras nas costas. Há,
ainda, esculturas com fortes simbolismos. Em cada círculo, exemplos de virtudes
opostas aos pecados são apresentadas. No segundo círculo, os invejosos têm os
olhos costurados com arame; no terceiro, os iracundos sofrem sufocados em fumaça;
no quarto, também classificado como “Médio Purgatório”, os preguiçosos correm incessantemente.
Nessa parte, Dante dá uma pausa e adormece novamente. No “Baixo Purgatório”, os
pecados são provocados por “amor invertido”; no “Médio”, por “amor falho”.
Alto Purgatório: no quinto
círculo começa a parte alta da montanha, onde os pecados são mais leves,
cometidos por “amor excessivo”. Lá, os avarentos ficam deitados, de rosto para
o chão. É onde encontram o poeta romano Estácio, grande admirador de Virgílio.
Estácio começa a acompanha-los, indo embora somente na chegada ao topo. No
sexto círculo, os gulosos, secos por inanição, convivem com água e uma árvore
cheia de frutos, porém, sem poder beber ou comer. A árvore nascera de uma
semente da Árvore do Bem e do Mal, do Éden. No sétimo e último círculo, os
luxuriosos jazem em um tipo de fogo, menos agressivo que o infernal. Dante usa
de sua fé para ultrapassar o fogo, superando o medo, e chegar em uma escada rumo
ao cume. Na escada, ele adormece.
Ao acordar, Dante, Virgílio e Estácio adentram o Jardim do Éden ou Paraíso terrestre, no alto do monte, onde se encontra uma jovem a colher flores, em belíssimo campo. Há dois rios, o Letes e o Eunoé, onde Dante se purifica para esquecer as coisas ruins do mundo e lembrar as coisas boas. Virgílio se despede e vai embora com Estácio. Eis que surge uma procissão celestial com sete candelabros de ouro, animais, musas e anciões, incluindo profetas e santos, como São Paulo, além de uma carruagem puxada por um grifo – com seu corpo e patas de leão e cabeça e asas de águia. Nisso, chega Beatriz. Dante, comovido e mudo a chorar, contempla a amada, que lhe repreende pela vida desregrada que o poeta havia adotado nos últimos tempos. Juntos, caminham até a Árvore do Bem e do Mal, seca e colossal, no ponto máximo da montanha, até que ela, milagrosamente, começa a florescer em folhas, frutos e flores violetas.
Ilustração da procissão celestial, por Gustave Doré.
O Paraíso, última parte do poema
dantesco, inicia-se com a ascensão de Dante e Beatriz para a Lua, viajando pela
luz, em alta velocidade. O Céu é formado por amor perfeito; enquanto o
Purgatório por amor imperfeito e o Inferno por ausência de amor. Quanto mais
virtuosas as almas forem em vida, mais alto elas irão morar no Paraíso, que se
constitui por 9 esferas celestes – uma movendo a outra –, incluindo Sol e Lua,
além do Empíreo. Cada Céu é regido por um tipo de anjo, sendo que o grau
celeste é proporcional à hierarquia angelical, que será explicada mais adiante.
Nessa parte do poema, muitos questionamentos filosóficos de Dante são
solucionados pelas almas, porém, não é possível entender tudo, visto que apenas
Deus conhece a integridade da realidade. Mesmo os espíritos que habitam as esferas
mais distantes do Empíreo são felizes e conformados com o destino pós-morte,
pois no Céu não há tristeza. Quanto mais alto Dante e Beatriz sobem, mais a
formosura, a beleza, de Beatriz se intensifica, tanto que, em certo momento,
ela deixa de sorrir para que sua beleza não fira Dante, tal como um raio a
atingir um tronco. Isso é, depois, solucionado, quando os olhos do poeta são,
de certa forma, abençoados.
Na esfera da Lua, que é tipo um
vestíbulo do Paraíso, estão os que não cumpriram integralmente seus votos, com
coragem insuficiente; na de Mercúrio, está quem almejou a santidade, mas para
obter glória pessoal, portanto, com justiça insuficiente; na de Vênus, os
amorosos, embora fracamente partícipes da temperança.
A quarta esfera é a do Sol, onde
habitam os sábios – lá estão os filósofos/teólogos São Tomás de Aquino e São
Boaventura, que conversam com Dante. Eles personificam a prudência e irradiam
luz, enfileirando-se em círculos. Em Marte, a quinta esfera celeste, está quem
defendeu e lutou pelo cristianismo. Eles personificam a coragem e, brilhando,
formam uma sublime e enorme cruz. A próxima esfera é a de Júpiter, dos
governantes guiados pela virtude da justiça. Eles formam, com suas luzes
irradiantes, a figura de uma grandíssima águia e falam, quando querem, em uníssono,
mesclando as consciências. Na sequência, Dante e sua amada guia chegam à
Saturno, onde encontram as almas daqueles que viveram uma vida contemplativa, pautada
na temperança. O planeta é descrito como sendo cristalino. Nele, há uma escadaria
de ouro com tantos degraus que é impossível visualizar o seu fim.
Subindo, o poeta chega à oitava
esfera, das Estrelas Fixas. Lá de cima, Dante contempla a galáxia e o planeta
Terra, tão distante. É a morada de quem prosperou na fé, na esperança e no
amor. No alto, um Sol (Cristo) é vislumbrado ao longe. Aqui, o conceito de fé
do poeta é questionado por São Pedro; o conceito de esperança por São Tiago e o
de amor por São João Evangelista. Tendo êxito nos testes dos santos, a dupla
ascende à última esfera física do Universo, o Primum Mobile, ou seja, o
primeiro céu, movido diretamente por Deus – os outros céus são movidos
indiretamente. É onde moram os anjos, cuja hierarquia se inicia com os anjos
comuns, mais próximos dos seres humanos, e passa pelos arcanjos, anjos-príncipes,
anjos-potências; anjos-virtudes; anjos-dominações; anjos-tronos, querubins e,
os mais próximos de Deus, serafins. Cada um cuida de um Céu específico, na
mesma ordem hierárquica. É possível, nesta esfera, visualizar os nove anéis de
anjos a girar em torno de um ponto de luz.
Um último salto ainda é
necessário para conhecer Deus. Dante e Beatriz, enfim, ascendem aos limites do
Universo, fora de qualquer plano físico, o chamado Empíreo, morada de Deus e
dos espíritos mais elevados – que podem visitar os demais círculos, como São
Pedro, que conheceu Dante na altura das Estrelas Fixas. Há no Empíreo o mais
belo de todos os jardins, com um rio de luz. No alto, as almas compõem a figura
de uma incomensurável rosa mística, onde Nossa Senhora ocupa seu lugar ao
centro. Beatriz deixa Dante e se posiciona entre os espíritos a formar a rosa.
São Bernardo se aproxima e conduz o poeta em seus últimos versos. Com a
permissão da Virgem Maria, Dante move os olhos na direção do ponto mais
luminoso de todo o Universo, rodeado por milhões de anjos. Sem a concessão de
Maria, é impossível que os olhos de um mortal possam fixar a visão em tão alta
magnificência. Dante afirma que nenhum poeta seria capaz de expressar sequer
uma pálida centelha da ideia da grandiosidade daquilo que ele estava vendo. É
algo inefável, além de toda compreensão, de toda Filosofia ou Teologia. Na luz,
o poeta distingue três círculos, a Santíssima Trindade (Cristo, Espírito Santo
e Deus). Adaptada à forma dos círculos, uma figura humana. A face de Deus –
impossível de ser explicada pelo entendimento. Assim, em visão beatífica, o
poeta alcança o fim de sua jornada, podendo, enfim, voltar para casa.
Ilustração do Paraíso, por Gustave Doré.
FONTES: ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução, prefácio e
notas de Hernâni Donato. São Paulo: Editora Cultrix,
1996.
José Monir Nasser (comentários sobre a obra, no YouTube); Wikipédia;
Adaptação em prosa e notas por Helder da Rocha. Disponível em: http://stelle.com.br
VASCONCELOS, Yuri. Como é o mapa do inferno? In Revista Superinteressante. Disponível em: super.abril.com.br/mundo-estranho/como-e-o-mapa-do-inferno
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