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quarta-feira, 2 de junho de 2021

Entre nós poderia haver um laço...

Autor(a): Ester Silva





Poderíamos dormir até tarde na segunda, levantar cedo no domingo, ou até mesmo fazer o mais esperado contrário. Então, num dia eu te observaria dormir, invejaria a calmaria das tuas costas, os canteiros dos teus olhos, cobertos por grossas e negras sobrancelhas e o mais profundo mar que guarda por dentro. Me banhariam as tuas ondas nos instantes de ressaca? Contemplaria a tua imagem, como se fosse o meu mais esperado filme, de uma fã que muito aguardou nos bastidores para que eu pudesse, finalmente, assisti-lo. 


No outro dia, você, com esses olhos grandes de jabuticaba madura – que chamam (gritam) pra provar do doce que têm – se debruçaria sobre mim e diria que não precisa pressa. “Vamos ficar mais um pouco? Está tão frio lá fora… o clima, as pessoas e dentro delas…”. Quanta inocência… Eu ficaria por horas e nem pediria pra chegar um tiquinho mais pra lá da cama. “Mais pra cá, meu bem”. Até não haver mais espaço pro frio entre a gente. Só calor. Calor humano, calor de afeto. Aí eu te sinto, te cuido, te abraço. Um belo laço, podendo ser desfeito. Mas ainda é cedo. Depois, agora não. 


Poderíamos preparar o café juntos. Você se espreguiçaria e levantaria com o lado do rosto e camiseta amassados, e, enquanto põe água no bule, eu preparo a mesa. Sonhos, pães, queijo, uma flor amarela na garrafa no centro da mesa. Talvez fosse brega eu brincar de te levar o um pedaço de sonho à boca… Ou não. Amor rendado de brega que é bom. Poderia ser brega e te olhar comer, falar das suas cores preguiçosas de um domingo às seis, às sete ou às dez, não importa. Poderia ser brega ao comer um pedaço de bolo segurando tua mão. Um laço, podendo ser desfeito, mas… ainda não. Depois.  Entre um gole de café e outro, me adoçaria a boca com beijos de brigadeiro, que faríamos juntos no fogão, pra cobrir um bolo de cenoura que comeríamos metade. 


Mais tarde, enrolados no sofá, assistiríamos qualquer coisa que nos acompanhasse no sossego, no tédio ou fizesse pensar em como caminha a humanidade, enquanto nos perderíamos um no outro, sem a menor pressa de nos achar. Fica mais fácil o ócio da vida quando temos alguém pra dividi-lo em cima do sofá, com as portas abertas – de propósito -, o vento entrando, batendo e esfriando – de propósito -, só pra gente se aconchegar mais nas cobertas. Eu em você e você em mim. 


Poderíamos sair, ir até algum lago e brincar de jogar pedrinhas, pra ver quem atiraria mais longe. Disputaríamos corrida, deitaríamos na grama, caminharíamos descalços, chinelos nas mãos, o vento nos abraçaria e eu teria teus dedos entrelaçados aos meus. Um perfeito laço, podendo ser desfeito a qualquer momento, mas agora não. Depois. Eu poderia puxá-lo, tirá-lo para dançar, sem música nem plateia. Talvez pisasse nos meus pés, talvez me girasse em perfeitos 360°, mas sem largar da minha mão; não precisa. Poderíamos dançar a vida toda, se quisesse. Poderia chover. 


Tomaríamos banho, sem medo ou vergonha, deitados, correndo e, já sujos de lama, poderia abraçar-lhe o peito, sua blusa branca molhada e dizer-lhe o quão feliz eu estaria. Ou talvez fosse o dia mais feliz, pelo simples fato de fazermos todas aquelas coisas pequenas se tornarem grandes e ainda mais significantes. 


Poderíamos viajar. Rodar o mundo de cabeça para baixo, montando planos e estratégias mirabolantes para nós, para o mundo e em prol dele, ou poderíamos simplesmente prosseguir amando. Amando a nós e à vida, as pequenices que ela nos dá para complementar os dias, os meses, os anos, e alimentar a certeza de que não precisamos de ouro, prata, mansões e tanto dinheiro na conta que nem cabe de dedos nas mãos pra contar de zeros. Poderíamos morar numa casinha de sapê, na praia, numa vilinha ou numa montanha (ou as duas coisas), com o verde dos lados, o azul na frente e, ao entardecer, teríamos o rosa alaranjado misturando-se ao azul escuro da noite que vem chegando pra juntinho de nós. 


Veríamos o firmamento sendo pintando em bolinhas brilhantes, convidando a gente a se deitar na areia ou na rede da varanda, pra assistir aos semblantes dos deuses nos espiarem lá de cima. Enquanto isso, a gente se deixa embalar no vai e vem da rede, pela brisa, pelo afeto e pelas horas quietas que insistiriam em passar ligeiro, só pra teimarem comigo, que as queria escorrendo mais lentamente, pra que eu pudesse tê-lo no meu colo por mais tempo, mais um bocadinho que fosse, mas sairia ganhando, estava no lucro. Mas tudo bem, seria só o dia que teria acabado. 


Ainda poderíamos levantar da rede ou da areia e, de mãos dadas, entraríamos. Teríamos uma lareira esperando por nós, para nos aquecer, enquanto preparamos o jantar e, em meio às massas de macarronada ou qualquer outra coisa que nos roubasse a fome, seríamos acompanhados pelas canções da Bossa, ecoando pela casa, sentaríamos à mesa ou no chão. Poderíamos nos rodear de vários travesseiros, riríamos de nossas peraltices acometidas no dia, das belezas vistas, das descobertas e conversas e o que mais nos houvesse distraído e envolvido nas aventuranças de jovens sonhadores. E depois de tudo, poderíamos nos recolher. Poderíamos ler um para o outro, dividir confissões ou simplesmente ficar deitados, olhando para o nada, mas sentindo tudo: um mundo confuso, em guerra e aflições; mas seríamos refugiados – um no outro. 


E, sobre a cama aquecida de lençóis, edredom, de nossos cheiros e de nós, você me abraçaria, eu o abraçaria. E seríamos um laço. Podendo a qualquer momento ter puxadas suas hastes, desfazendo o que nos uniria. Mas pediríamos um ao outro para ficar mais um pouco, pois estaria tão frio lá fora… o clima, as pessoas e dentro delas… 


E então deixaríamos esse desato para depois. Agora não… outro dia. Outra hora, n’outro caso, com outras pessoas.  Nós não. Agora não. 


Depois. 


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