Análise e comentários:
FILMOGRAFIA DE JANE CAMPION
21
de setembro de 2021
Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia
foto: festival-cannes.com
/ © AFP
Jane Campion, nascida em 1954, é uma
diretora de cinema neozelandesa. Ela foi a primeira (e, até então, única) mulher
a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, em 1993, pelo seu
terceiro – e mais célebre – filme, O Piano (1993), responsável também
pela indicação de Campion na categoria de Melhor Direção no Oscar de 1994, perdendo
para Spielberg, com A Lista de Schindler. Até hoje, apenas sete mulheres
competiram nessa prestigiada categoria da premiação. Ainda por O Piano,
a diretora levou o Oscar de Melhor Roteiro Original, impulsionando seu nome
internacionalmente. Na academia, estudou Antropologia e Artes Visuais,
admitindo a influência da pintura, especialmente Frida Kahlo, em sua própria
arte.
Sua carreira nas telas do cinema se
inicia com uma série de curtas-metragens de sucesso, com destaque para An
Exercise in Discipline: Peel (1982). O primeiro longa-metragem veio com Two
Friends (1986), um telefilme de baixo orçamento, mas roteiro bem elaborado.
A estreia de Jane em longas para a tela grande só ocorre em Sweetie (1989),
onde já se encontram muitas de suas características fílmicas. Após isso, foram
sete longas, sendo o mais recente Ataque dos Cães (2021), lançado em
festivas da Europa este mês – com previsão de chegar à Netflix em dezembro.
Além disso, codirigiu e roteirizou a série de detetive policial Top of the
Lake.
No que se refere aos temas dos
filmes realizados por Campion, as tentativas de controlar a liberdade das mulheres
é assunto recorrente. Por vezes, a coerção é institucional, como em Um Anjo
em Minha Mesa (1990), quando a liberdade da protagonista é cerceada pelos
médicos, que atestam um diagnóstico falso. Em outras, a coerção é feita pela
família, como o padrasto de Kelly em Two Friends e os esposos da pianista
muda em O Piano e da bela Isabel, em Retratos de Uma Mulher
(1996). Em Fogo Sagrado! (1999), o controle vem da família da
protagonista, no intento de desfazer uma radicalização religiosa. Normalmente,
essas mulheres são reprimidas sexualmente, com certos bloqueios psicológicos.
Os eventos de cada filme as impactam de tal forma que muitas dessas amarras se
afrouxam – tendendo da repressão à catarse.
O estilo artístico da obra da
cineasta imprime suas singularidades, por isso é comum encontrarmos semelhanças
entre elementos dos filmes. Há muitas cenas de nudez, sem qualquer pudor, entre
mulheres, mas também entre homens – coisa rara no cinema, que costuma preservar
o desnudamento masculino e saturar a sensualidade feminina. A tensão sexual é
constante e o erotismo, em alguns filmes, é bastante explícito. Nisso, há um
quê de voyeurismo, como se Jane nos colocasse em posição de espionar por
entre as frestas. Os cenários passeiam vistosamente pela Oceania, particularmente
Nova Zelândia, terra da diretora, e Austrália, até Montana, Estados Unidos, no
início do século passado, e países da Europa. As personagens fazem longas
viagens, passando por meio de uma natureza imperiosa, colossal, sublime. Há
desertos e montanhas imensas. A câmera flutua e cobre bem as figuras e seus
fundos, com closes bem encaixados, tirando o melhor da atuação do elenco.
Tecnicamente, o primor é elevadíssimo. Além de O Piano, as fotografias
de Fogo Sagrado! e Ataque dos Cães (2021) são algumas das mais
belas que já vi. Ainda há detalhes interessantes: os títulos dos filmes surgem
de modo bastante estilizado, charmoso, na tela. E as crianças do elenco, muitas
vezes, aparecem do nada e fazem algo completamente aleatório e engraçado –
traço que aparece já no primeiro telefilme da diretora.
Na sequência, deixo minhas sinopses, comentários e notas acerca de cada filme da filmografia de Jane Campion, do pior ao melhor.
Two Friends (1986)
(telefilme)
Nota pessoal: 6,5 (bom)
Rotten Tomatoes: 100% | IMDb: 6,5/10 | Metacritic: - |
Filmow: 2.8/5
Comentário: Louise e Kelly são duas amigas
adolescentes. Louise é reservada, discreta, enquanto Kelly possui certa
inclinação à rebeldia. O primeiro longa de Campion é um telefilme, ou seja,
nunca passou na tela grande dos cinemas. Percebemos a limitação do orçamento,
mas também, já aqui, a criatividade da cineasta: a cronologia é reversa. O
começo do filme é o fim da história. Depois, retrocedemos mês a mês afim de
entendermos como a amizade das duas tomou rumos tão distintos, especialmente
por influência direta do padrasto de Kelly. O tema do “controle” (social,
familiar ou de gênero) sobre a liberdade feminina surge aqui e reaparece
diversas vezes na obra da diretora. Vemos o que o suporte – ou a falta de
suporte – do núcleo familiar pode propiciar na vida de uma jovem, abrindo
caminho para instabilidades, econômicas e sanitárias, por exemplo. Trata-se de
um filme bem simples e real. Em boa parte do tempo, coisas banais acontecem,
ainda que favoreçam o plot basilar, que são as mudanças de Kelly.
Bright Star (2009) | Brilho de uma Paixão
Nota pessoal: 6,6 (bom)
Rotten Tomatoes: 82% | IMDb: 6,9/10 | Metacritic: 81%
| Filmow: 3.7/5
Comentário: Na Inglaterra do século XIX, Fanny Brawne
se apaixona por John Keats, o último dos grandes poetas românticos do país.
Devido a saúde fragilizada do escritor, o casal vive grande parte do romance
por meio de cartas de amor. Ao contrário da maior parte da filmografia de
Campion, Brilho de uma Paixão não é sensual, mas destaca o amor, bem
como a inspiração poética, acima das trivialidades do mundo, ou seja, de modo platônico,
ideal. O filme é delicado, com uma bela fotografia de época, detalhados
figurinos e cores pouco saturadas, apesar da proeminência de borboletas e
flores. O roteiro é recheado de versos declamados, até mesmo ao longo dos
créditos finais – prato cheio para os amantes da poesia. Nisso, cria afinidade
com outra obra da cineasta, Um Anjo em Minha Mesa (1990). O tom do filme
é coerente e cria unidade, mas há poucos desafios dramáticos, o que deixa o
resultado morno. Falta emoção. Apenas uma cena, no final, exige alto nível de
atuação – e cumpre bem o propósito, façamos justiça. O ritmo, porém, é
enfadonho e cansativo, com raros eventos de peso. No geral, vale a pena pela
poesia.
The Portrait of a Lady (1996) | Retratos de Uma Mulher
Nota pessoal: 6,8 (bom)
Rotten Tomatoes: 45% | IMDb: 6,2/10 | Metacritic: 61%
| Filmow: 3.2/5
Comentário: Isabel é uma americana a conhecer a Europa
do século XVIII. Sua beleza e virtudes acabam por apaixonar perdidamente vários
homens, mas ela os rejeita. Seu coração só fica abalado quando ela cai na lábia
de um excêntrico – e moralmente duvidoso – colecionador de arte. Adaptado de um
romance de Henry James, o quarto longa-metragem para cinema de Jane é mediano,
com erros e acertos notáveis. Nicole Kidman, no papel principal, traz uma
atuação, na maior parte do tempo, contida. Apesar de bela, o fascínio irrestrito
dos personagens masculinos exigia uma postura mais firme, arrebatadora, da
protagonista – o que não ocorre. Há cenas oníricas bem interessantes, ainda que
poucas, permitindo que o público mergulhe nos desejos profundos e reprimidos de
Isabel. Poucas também são as cenas em que a diretora faz uso de cinegrafia
antiga, dando aspecto de filme arcaico. Os figurinos de época são exuberantes.
Destaco também a forte trilha sonora, que intensifica as cenas dramáticas. Os
jogos de manipulação e desvelamento moral são o ponto alto, movendo a trama.
Sweetie (1989)
Nota pessoal: 7,0 (muito bom)
Rotten Tomatoes: 88% | IMDb: 6,8/10 | Metacritic: 81%
| Filmow: 3.4/5
Comentário: Kay é uma jovem introvertida que se guia
pelas profecias de uma vidente da cidade, o que a leva a “roubar” para si o
noivo de uma colega. Com o tempo, a relação do casal não anda bem, piorando com
a chegada de sua irmã, Sweetie. O primeiro longa para cinema de Jane é um filme
bem distante do comum: personagens idiossincráticas, humor ácido, situações
absurdas e grotescas e uma estética desconfortável. Cada figura parece
deslocada, inclusive na proporção dos closes para o restante da mise-en-scène.
As duas irmãs, que giram a trama, são diametralmente opostas em temperamento.
Enquanto Kay é quase mecânica na busca pela ordem do destino, Sweetie é puramente caótica, descontrolável – além de
todo limite ético culturalmente aceitável. O pai, ao invés de entender a
condição patológica de Sweetie, parece ter criado uma ficção de filha talentosa
e adorável, o que dá margem aos conflitos do longa. Há simbolismos
interessantes, como a fobia de Kay por árvores, notadamente raízes de árvores.
Embora peculiar, a experiência me deixou um gosto de “poderia ser melhor”,
ainda que o intuito de estranhamento e mal-estar tenha sido bastante eficaz.
In the Cut (2003) | Em Carne Viva
Nota pessoal: 7,4 (muito bom)
Rotten Tomatoes: 33% | IMDb: 5,3/10 | Metacritic: 46%
| Filmow: 2.7/5
Comentário: Uma professora solitária e um detetive
sedutor engatam um romance durante a investigação de um assassinato ocorrido na
região. É um neo-noir, com um ótimo mistério e uma enxurrada de cenas
quentes. Meg Ryan e Mark Ruffalo estão ótimos e funcionam bem na trama. É um
daqueles filmes que nos convidam a investigar o caso, junto aos personagens:
quem é o assassino? Somos apresentados aos suspeitos e às pistas, muitas vezes
falsas, é claro. Por meio de pequenos elementos isolados, como uma tatuagem,
vamos montando o quebra-cabeça. A fotografia, quente, sombria, ajuda na imersão
ao criar ambientes de voyeurismo, como se nós, expectadores, expiássemos
secretamente o que ocorre em tela. A própria protagonista age como voyeur
em uma sequência. Como pontos negativos, cito o excesso de cenas que pouco
contribuem ao enredo e a saturação do erotismo, que, ao meu ver, passa do
ponto. O desfecho também não é muito satisfatório. Essa “gordura” desnecessária
do roteiro prejudica a unidade da obra, ainda que eu não concorde com as notas
baixíssimas de grande parte do público e da crítica.
Holy Smoke (1999) | Fogo Sagrado!
Nota pessoal: 7,6 (muito bom)
Rotten Tomatoes: 45% | IMDb: 5,9/10 | Metacritic: 57%
| Filmow: 3.1/5
Comentário: Após temporada na Índia, uma jovem
australiana adere cegamente a um culto religioso hindu. Sua família,
preocupada, contrata um profissional para desfazer o fanatismo. Diferentemente
de boa parte das críticas, considero um filme subestimado. Tem seus defeitos: o
tom destoa, não decidindo entre o cômico, o drama e o romance, o que
transparece na trilha sonora. Cortes em câmera lenta dizem mais à estética do
que ao roteiro, prejudicando a unidade da obra. Soa incoerente, por vezes.
Porém, seus méritos são imensos. A fotografia é uma das melhores da carreira de
Campion, superando O Piano (1993). Das tomadas iniciais, na Índia, até
os vastos desertos da Austrália, que ocupam a maior parte do longa, tudo que
vemos é de encher os olhos. Paisagens magníficas, um banho de cultura hindu,
sublime vastidão, céus flamejantes e pitadas de psicodelismo. Outro ponto alto
é a relação entre os dois protagonistas. O especialista, encarregado de “reverter”
o fanatismo, é um bloco de racionalidade, método, eficiência. Porém, a beleza
feminina, o viço da juventude, inebria sua moral, abala sua segurança. É um
duelo entre a razão e o sensualismo primitivo, entre o controle e o ato de
ceder, a verdade e a dissimulação. Conseguiu prender minha atenção, do início
do fim.
An Angel at My Table (1990) | Um Anjo em Minha Mesa
Nota pessoal: 8,0 (ótimo)
Rotten Tomatoes: 94% | IMDb: 7,5/10 | Metacritic: 79%
| Filmow: 4.0/5
Comentário: Janet Frame foi uma grande escritora
neozelandesa, tendo publicado diversos tipos de literatura, como contos e
poemas. Neste filme, sua história real é contada da infância, passando pela
adolescência, até chegar na vida adulta. Nesse tempo, a literata ruiva passa um
período no sanatório, onde sofre um tratamento psiquiátrico arcaico e brutal. Dividido
em três partes, como capítulos, três atrizes distintas interpretam a
protagonista, uma para cada fase da vida. São atuações excelentes, especialmente
na idade madura. Conhecemos os belos campos, apinhados de ovelhas, da Nova
Zelândia, e um pouco dos costumes e das vivências do país, em meados do século
passado. O filme é realista e funciona muito bem enquanto cinebiografia
(adaptado de livro da própria escritora), com riqueza de detalhes. Outro ponto
positivo é a narração em off de Janet, como uma chave para abrir suas
memórias íntimas, e a inserção de versos de poesia, perfumando o roteiro. O
único “porém” é a duração, excessivamente longa – o que pode cansar parte dos
expectadores.
The Power of the Dog (2021) | Ataque dos Cães
Nota pessoal: 8,9 (ótimo)
Rotten Tomatoes: 92% | IMDb: 6,5/10 | Metacritic: 92%
| Filmow: -
Comentário: Dois irmãos são donos de uma rica fazenda
em Montana, no ano de 1925. Phil é um cowboy bruto, “machão”,
inconveniente, agressivo e extremamente tóxico. Seu irmão, George, por outro
lado, é gentil, lacônico e pacífico. As coisas começam a complicar quando George
se casa com uma viúva, que leva seu filho único para morar com eles na fazenda.
Dividido em partes e baseado em romance de Thomas Savage, trata-se do mais
recente longa de Jane, após um grande hiato, de mais de uma década, no cinema.
A diretora nos conduz por entre paisagens planas e montanhosas, cheias de gado.
Como de praxe em sua carreira, a fotografia causa sublime impacto. Outro
elemento vital no longa é a trilha sonora, de Jonny Greenwood, guitarrista do
Radiohead, entre silêncios e cordas a criar tensão constante e crescente, como
se o perigo se aproximasse cada vez mais. O tom, quase de terror, avança
lentamente, sem romper demais. Não espere reviravoltas grandiosas, mas
construções sutis, que levam a caminhos inesperados – podendo frustrar expectativas
no final. É um filme bem desconfortável de se ver, tendo em vista que os
animais sofrem: os fazendeiros castram (e abatem) o gado. Há ainda nudez
masculina despudorada. A presença de Phil, interpretado por Benedict
Cumberbatch, marca o filme de ponta a ponta. Todo o elenco está excepcional.
Podemos elencar Ataque dos Cães tranquilamente entre as melhores obras
da filmografia da diretora e como forte candidato ao Oscar do próximo ano.
The Piano (1993) | O Piano
Nota pessoal: 9,6 (excelente)
Rotten Tomatoes: 90% | IMDb: 7,6/10 | Metacritic: 89%
| Filmow: 4.0/5
Oscars: melhor atriz, melhor atriz coadjuvante e
melhor roteiro original.
Comentário: Uma mulher muda, sua filha e seu pesado
piano viajam para a Nova Zelândia, em meados do século XIX. No novo lar, ela
conhece seu esposo – resultado de um casamento não desejado. O homem não
aceita, de primeira, transportar o piano do litoral para a casa e, enfim, vende
o instrumento para seu vizinho, deixando a esposa transtornada. A trama do
filme gira em torna da relação entre a mulher e este vizinho, que propõe trocar
paulatinamente o piano, tecla por tecla, por favores sexuais. Todo o elenco é
magnífico, sobretudo a protagonista, que, mesmo sem falar, atua
fulminantemente, e sua filha, intensa em dramaticidade, mas leve, natural.
Ambas ganharam o Oscar por este trabalho, a menina com apenas 11 anos. A tensão
sexual é constante e eleva o suspense da trama ao nos prender ao que imaginamos
sequenciar cada cena. Há ainda muito romance e pitadas certeiras de humor. Toda
a fotografia, que valoriza cada expressão dos atores e realça maquiagens e
figurinos de época, esbanja tons sombrios e chuvosos. Isso cria uma atmosfera
realista e densa, palpável, uma experiência deveras imersiva. No todo, uma obra-prima
inesquecível, um jovem-clássico da sétima arte.
Filmografia
completa da diretora:
2021
- The Power of the Dog (Ataque dos Cães)
2009
- Bright Star (Brilho de Uma Paixão)
2003
- In the Cut (Em Carne Viva)
1999
- Holy Smoke (Fogo Sagrado!)
1996
- The Portrait of a Lady (Retratos de Uma Mulher)
1993
- The Piano (O Piano)
1990
- An Angel at My Table (Um Anjo em Minha Mesa)
1989 - Sweetie
1986
- Two Friends *filme para TV
FONTES: todos os filmes
acima, em negrito; Wikipédia; Adoro Cinema; Rotten Tomatoes; IMDb; Metacritic e
Filmow; "O Piano" ganhou Oscar e Cannes. In: Folha de S.
Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc010607.htm
ALVES, Cláudio. Jane
Campion | Mestra da Sétima Arte. In: Magazine.HD. Disponível em: https://www.magazine-hd.com/apps/wp/jane-campion-mulheres-realizadoras-retrospetiva/
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