Análise e comentários:
FILMOGRAFIA DE STANLEY KUBRICK
30
de novembro de 2023
Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia
foto: chippu.com.br
Stanley Kubrick, nascido em 1928,
nos Estados Unidos, e morto em 1999, foi um dos maiores e mais influentes
cineastas da História, tido por muitos como o maior. Reconhecido por seu estilo
provocativo, metódico e perfeccionista, com domínio técnico absoluto, adaptou
grandes obras da literatura, que se traduziram em clássicos da sétima arte.
Pioneiro em efeitos visuais, tendo consultoria da NASA, dirigiu o aclamado 2001:
Uma Odisseia no Espaço (1968), com imagens impressionantes de sua reconstrução
do espaço. Desde jovem, demonstrou aptidão à fotografia, com publicações na
revista Look, além de ter sido um exímio enxadrista, o que o dotou,
segundo o próprio, de “paciência e disciplina”, refletindo na construção lenta,
mas bem-pensada, de toda sua filmografia.
Sua obra se constitui de 13
longas-metragens, com início no amador Medo e Desejo (1953), que o
próprio Kubrick descartou, pelo resultado, embora já carregue traços do estilo
que o consagrou mais tarde. Na sequência, dois filmes influenciados pelo gênero
noir, em voga na Hollywood dos anos 50, com O Grande Golpe (1956)
elevando o patamar de sua carreira, com um roteiro rebuscado e uma montagem
não-linear. Em Glória Feita de Sangue (1957), o diretor lança, enfim,
seu primeiro clássico, um marco do cinema antiguerra, com Kirk Douglas no papel
principal. A colaboração com Kirk se mantém no premiado épico-histórico Spartacus
(1960), mas sela os trabalhos do diretor nos Estados Unidos, por não se contentar
com as interferências do estúdio – mudando-se, então, ao Reino Unido, onde passa
a produzir suas obras.
Em solo britânico, conquista o controle
absoluto sobre a própria criação, com oito polêmicos e cultuados longas,
começando com Lolita (1962), adaptação do controverso romance homônimo.
Nessa fase, dirigiu ainda uma sátira de humor ácido, duas ficções científicas
(uma espacial, uma política), um drama histórico, passado no século XVIII, um
filme de guerra, com traços documentais, e, por fim, um thriller “erótico”,
cheio de camadas psicanalíticas. Seus últimos três trabalhos levaram
respectivamente cinco, sete e doze anos para serem concluídos, com extensos
estudos acerca de cada universo-temático retratado.
Havia, ainda, um projeto de dirigir
um épico sobre Napoleão, quiçá a maior ambição (tendo em vista o volume de
anotações) do diretor, que faleceu antes mesmo de iniciar a produção. Outro
projeto, sobre um menino-robô, também não chegou a ser concluído, em vida, por
Kubrick, mas legado à Steven Spielberg e lançado posteriormente, em 2001, com o
título de A.I. - Inteligência Artificial.
Entre seus temas, a desconfiança e
certo pessimismo quanto à natureza humana são recorrentes, com críticas ao
absurdo da guerra, por exemplo. O bicho-homem, instintivo, adestrado a se mascarar
em sociedade, é destrinchado, dividido em muitas camadas, que geram discussões
de ordem sociológica e filosófica. Por isso, geralmente há uma trama
superficial, onde os personagens interagem ao ambiente, e um subtexto simbólico,
indicando espelhos do comportamento humano – em um retrato perturbador da perversidade
de nossa espécie. São filmes que denunciam nossas sombras. Nisso, o fator
psicológico é basilar, com constantes gatilhos a desencadear transtornos psíquicos
nos personagens, como as diversas facetas do que chamamos de “loucura”.
O estilo artístico do diretor passa,
no ritmo, por uma antecipação estética e atmosférica do que é revelado durante
a exibição dos filmes, fazendo com que liguemos pontos distintos do roteiro, ou
seja, rimando cinematograficamente, ecoando mensagens. Há uma construção
minuciosa de cada linha de diálogo, em sintonia com a unidade da obra, num
todo. Embora propositalmente lentos, como (aqui) devem ser, os enredos prendem
nossa atenção, em suspenses muitas vezes ininterruptos, costurando os pontos
abertos com paciência. Na montagem, planos se alongam, na justíssima medida, especialmente
quando as atuações entregam nos detalhes (de uma microexpressão, que seja)
aquilo que o filme quer passar. Por exemplo, o olhar desconcertado de Tom
Cruise, tornando-se ressentido, em De Olhos Bem Fechados (1999), quando
toma consciência da (potencial) infidelidade de sua esposa: o close-up
pinta um quadro das emoções do personagem, justificando suas ações durante todo
o restante da trama. Os atores, num todo, saltam aos olhos, em closes
muitas vezes perturbadores, em performances “teatrais”, impostadas. Tamanho grau
de rigor exigiu dedicações hercúleas de toda produção. Kubrick chegou a gravar
148 tomadas (um recorde mundial) de uma mesma cena, em O Iluminado (1980),
até que estivesse satisfeito. A atriz Shelley Duvall, do mesmo filme, foi uma
das que mais sofreram, repetindo inúmeros planos – o que, propositalmente ou não,
acabou elevando a qualidade de sua performance, visto que a personagem deveria,
de fato, parecer exausta. Para se ter uma noção, a atriz repetiu a “cena da
escada” 127 vezes.¹
Na fotografia, o design de cada
frame aplica conceitos de composição, como o “ponto de fuga”, quando o
olhar dos espectadores tende a ser guiado, por meio de linhas, à determinadas
áreas de interesse. Kubrick se vale de pesos e contrapesos de imagem,
posicionando os elementos em tela, com paletas de cores pré-selecionadas, nos
focos de luz que julga ideais, criando auras específicas. Em Barry Lyndon
(1975), iluminação natural e velas deram à fotografia um tom pitoresco e
etéreo, com o auxílio de lentes encomendadas pela NASA.² Os efeitos visuais, do
já citado “2001”, foram tão inovadores que se criou a lenda de que
Stanley filmou em estúdio a chegada do primeiro homem à Lua. Realismo que praticamente
não envelheceu, mesmo após mais de meio século. Cito, ainda, o uso do zoom-out,
com planos fechados, em detalhe, que suavemente vão se abrindo, revelando a
complexidade da cenografia.
No que concerne à trilha sonora, o
diretor seleciona, para além das composições originais, músicas clássicas de
grandes compositores, como Beethoven, em Laranja Mecânica (1971). Essas
trilhas, não raras vezes, são usadas em montagem atonal, isto é, de acordo com
a teoria da montagem de Eisenstein, quando tons diferentes contrastam entre si,
gerando uma resposta estética específica – no caso, entre o tom sonoro, da
música, e o tom visual da sequência. Por isso, há planos aparentemente
desconexos com a música, mas que, em conjunto, criam uma atmosfera adequada ao
todo da obra, antecipando, por exemplo, o perigo. Essas trilhas, ainda, na
repetição, envolvem-nos emocionalmente, como um mantra hipnótico, desenrolando
as páginas da trama.
Pessoalmente, minha experiência com
o cineasta se alterou bastante ao passar do tempo. Assisti “2001” e Laranja
Mecânica há dez anos, antes de estudar cinema e Filosofia, e não gostei do
ritmo (lento) dos longas, muito menos entendi suas propostas. Hoje, com mais bagagem,
valorizo cada escolha da direção, nas obras kubrickianas. Diria que apenas seus
dois primeiros filmes não são ótimos. Àqueles que, por qualquer motivo,
desgostaram de seus clássicos, convido que revisitem sua filmografia, em
diferentes estágios da vida. Assim, talvez, possam apreciar a experiência com gosto
e olhar mais apurados. Na sequência, deixo minhas análises e comentários sobre
cada filme, deste que considero um dos maiores artistas do cinema
Fear and Desire (1953) | Medo e Desejo
Nota pessoal: 6,5 (bom)
Rotten Tomatoes: 71% | IMDb: 5,3/10 | Metacritic: - |
Filmow: 2.9/5
Comentário: Após caírem de avião, um grupo de quatro
soldados acaba perdido em terras inimigas, numa guerra desconhecida. Lá, eles
encontram uma camponesa, que os provoca medo – de que ela dedure a posição do
grupo ao general da base militar próxima –, e desejo, por sua beleza. O
primeiro longa-metragem de Kubrick, apesar do baixo orçamento, demonstra algumas
qualidades. Traços estilísticos e temáticos do diretor estão presentes, desde
já: construção longamente arquitetada da tensão; close-ups agressivos; e
especialmente perfis psicologicamente instáveis. A “loucura”, tão
característica nos filmes de Kubrick, é altamente centralizada aqui. Além, é
claro, do gênero bélico. Como ponto positivo, ainda há monólogos poéticos muito
bem escritos. Porém, é um filme simples demais, experimental e sem grande
impacto, o que o torna esquecível.
Killer's Kiss (1955) | A Morte Passou Por Perto
Nota pessoal: 7,4 (muito bom)
Rotten Tomatoes: 83% | IMDb: 6,6/10 | Metacritic: - |
Filmow: 3.3/5
Comentário: Um pugilista se apaixona por uma dançarina
noturna, envolvida perigosamente com o próprio patrão. O segundo longa de
Kubrick reflete o período de Hollywood nos anos 40 e 50, onde o gênero noir
imperava, com sua fotografia em preto-e-branco, altamente contrastada, prevalência
da madrugada, com seus painéis luminosos e avenidas movimentadas, trilha sonora
jazzística e um profundo sentimento de solidão e amoralidade. Entre os
personagens, a femme fatale típica do gênero, aqui, é a dançarina – e
sua relação com o ciumento e possessivo patrão. Cito ainda o lutador,
protagonista, que vem de uma série de fracassos no ringue e deseja voltar às
terras natais, idílicas, no interior do país. Fotograficamente, é uma obra
muito bem executada, com longas construções de cena, com capricho particular na
sequência de boxe, mas acaba sendo enfadonho, pouco envolvente.
Lolita (1962) | Lolita
Nota pessoal: 8,6 (ótimo)
Rotten Tomatoes: 91% | IMDb: 7,5/10 | Metacritic: 79%
| Filmow: 3.7/5
Comentário: Um professor, Humbert, aluga um quarto, na
casa de uma viúva, e acaba desenvolvendo uma obsessão patológica por sua filha
adolescente, Lolita. Baseado no controverso romance de Vladimir Nabokov, que
também assina o roteiro do longa, acompanhamos o desenrolar da história por
meio da narração (não-confiável) do protagonista, com a sequência de abertura,
ainda sem contexto, a pôr em tela um assassinato: o professor mata Clare Quilty,
um famoso roteirista. Só depois, de fato, iniciamos na trama, que se divide em
duas grandes partes: primeiro, focando na relação entre Humbert e Charlotte,
mãe de Lolita; depois, entre Humbert e a própria menina. É uma obra cheia de
camadas, tendo na superfície um enredo polêmico – de um homem de meia-idade
completamente obcecado (de todas as formas) por uma jovem garota. Somos guiados
pela mente perturbada, repulsiva, deste homem, que confessa seus desejos
reprimidos às páginas de um diário, enquanto move as peças da trama, no nível
da consciência, a fim de satisfazer essas querências veladas. No lugar do
erotismo, que fica implícito, temos uma discussão mais ampla sobre culpa,
obsessão, idealização romântica e desejo de posse.
The Killing (1956) | O Grande Golpe
Nota pessoal: 8,9 (ótimo)
Rotten Tomatoes: 96% | IMDb: 7,9/10 | Metacritic: 91%
| Filmow: 4.1/5
Comentário: Johnny Clay, um ex-presidiário, une-se a
um grupo de homens, dos mais variados cargos, em prol da realização de um golpe
milionário: roubar e dividir o dinheiro, de milhões de dólares, de um hipódromo
de apostas. Baseado em romance de Lionel White, com uma estrutura de montagem
não-linear – e uma narração a contextualizar o público, nada acostumado, à época,
com este tipo de subversão diegética –, o filme vai encaixando peças de um
complexo quebra-cabeça do crime. Passo a passo, vemos o planejamento se efetuar
em um tabuleiro de xadrez mortal, onde cada minuto a mais ou a menos pode botar
tudo a perder. O nível de tensão permanece alto durante toda a duração do
longa, com Kubrick abrindo lentamente cada porta de entendimento. Há muitos
elementos de film noir, especialmente na fotografia sombreada; mas, em
estrutura narrativa, assemelha-se muito ao que Quentin Tarantino fez nos anos
90, em Pulp Fiction.
Dr. Strangelove or: How I Learned to
Stop Worrying and Love the Bomb (1964)
| Dr. Fantástico
Nota pessoal: 9,2 (excelente)
Rotten Tomatoes: 98% | IMDb: 8,4/10 | Metacritic: 97%
| Filmow: 4.2/5
Comentário: Durante a Guerra Fria, um general dos
Estados Unidos, movido por teorias conspiratórias anticomunistas, ordena um
plano de ataque aéreo nuclear coordenado à União Soviética, sem a permissão do
presidente. Com essa premissa simples, mas poderosa, este clássico do humor
ácido faz uma sátira às políticas e ao militarismo da época. Há um quê de
ironia, paranoia e surrealismo, com personagens desajustados e caricatos.
Embora a urgência da situação, que, se executada, desencadeará a “máquina do
juízo final”, isto é, um mecanismo automático soviético de destruição da vida
na Terra, algumas das principais figuras envolvidas na trama não parecem ter
qualquer pressa, nem mesmo o presidente – que, ciente do ocorrido, deseja (sem
sucesso) cancelar o ataque. Os problemas políticos, que permitiram a execução
da ordem do general e sua consequente impossibilidade de cancelamento, são
alguns dos principais alvos da crítica, no filme. Como é possível uma única
pessoa ter em mãos o poder de causar ou não um apocalipse nuclear? E o que
podemos fazer para impedi-la? O absurdo põe em pauta o que a humanidade vivia
nas décadas posteriores à queda de Hitler, com uma tensão ininterrupta entre as
duas maiores potenciais globais. Destaco Peter Sellers, excelente comediante,
que interpreta não menos que três personagens, e a caprichosa fotografia.
Spartacus (1960) | Spartacus
Nota pessoal: 9,4 (excelente)
Rotten Tomatoes: 94% | IMDb: 7,9/10 | Metacritic: 87%
| Filmow: 4/5
Oscars: melhor fotografia, melhor direção de arte,
melhor figurino e melhor ator coadjuvante (Peter Ustinov).
Comentário: Spartacus passou a vida inteira sendo
escravizado, até que um lanista o compra e o leva, junto de outros, a ser
treinado na arte do combate – tornando-se gladiador. Com seus companheiros,
arma uma rebelião e foge, passando a liderar um exército, libertando milhares
de escravos pelo caminho e, assim, assustando o poderio militar romano. O
grande épico-histórico de Kubrick é seu primeiro longa em cores e traz uma
produção megalomaníaca, com cenários riquíssimos e centenas de figurantes.
Apesar da violência, o tom da obra é, muitas vezes, romântico, com cenas de
humor e poesia. Spartacus cativa, não por ser tão extraordinário em combate (de
fato, ele não é), mas por seu idealismo revolucionário e instinto de liderança.
O segredo de suas vitórias, é respondido pelo próprio: “A morte é a única
liberdade que o escravo conhece. Por isso, não tem medo dela”. Enquanto o homem
livre, ao morrer, perde o prazer da existência, o escravo perde as dores da
vida. São pesos muito distintos e que, no fim, fazem a diferença no campo de
batalha. Todo o núcleo da política de Roma é muito bem atuado, especialmente Laurence
Olivier, um dos maiores atores de todos os tempos, no papel do poderoso Marco
Licínio Crasso.
Barry Lyndon (1975) | Barry Lyndon
Nota pessoal: 9,4 (excelente)
Rotten Tomatoes: 87% | IMDb: 8,1/10 | Metacritic: 89%
| Filmow: 4.2/5
Oscars: melhor direção de arte, melhor figurino,
melhor fotografia e melhor trilha sonora.
Comentário: No século XVIII,
Barry, um jovem e pobre irlandês, após se decepcionar amorosamente com a
própria prima, parte à Europa, em plenos anos de Guerra dos Sete Anos, em uma
jornada de ascensão e queda. Dividido em duas grandes partes e vencedor de
quatro Oscars, o épico-dramático ostenta a melhor fotografia da carreira de
Kubrick, com cada frame parecendo um legítimo quadro da época, captado
em tecnologia inovadora, consultada pela NASA. Por certo, a iluminação
inteiramente natural ou à luz de velas contribui à beleza sublime dos
enquadramentos. Usa-se muito o zoom out, isto é, planos fechados que vão
se abrindo lentamente, comum na filmografia do diretor, enfatizando primeiro o
detalhe e depois os cenários grandiosos. A trilha sonora, por sua vez, unifica
diferentes planos em longas sequências hipnóticas, que vão progressivamente nos
imergindo na trama. É um filme sobre as possibilidades da vida, sobre como
nossas virtudes e vícios nos levam por caminhos tão diversos. Cada instante de
tomada de decisão seleciona uma vida inteira, incerta, obscura, pela frente – e
mata tudo aquilo que poderia ter sido, e não foi. Ainda que a duração seja realmente
longa, superior às três horas, o turbilhão emocional nos envolve do início ao
fim.
Full Metal Jacket (1987) | Nascido Para Matar
Nota pessoal: 9,6 (excelente)
Rotten Tomatoes: 90% | IMDb: 8,3/10 | Metacritic: 78%
| Filmow: 4.3/5
Comentário: Recrutas são treinados de forma
extremamente sádica pelo sargento Hartman, e depois enviados à Guerra no
Vietnã, onde conhecem um horror ainda maior. O penúltimo filme de Kubrick
também se divide em duas partes (em certa medida, independentes): na primeira,
conhecemos o treinamento militar dos fuzileiros das Forças Armadas
estadunidenses, na qual um militar de alta patente humilha e tortura
psicologicamente seus subordinados. Nessa parte, somos apresentados aos
principais personagens, incluindo J. T. Davis, que narra o filme em tom pessoal,
e Leonard Lawrence, que sofre bullying por seu sobrepeso e falta de
habilidades físicas. O palavreado utilizado durante todo o período de
preparação é o mais chulo possível, com os piores xingamentos que alguém
poderia receber – ainda por cima, aos berros. Na segunda metade, os fuzileiros,
então formados, são levados ao Vietnã, em um cenário de pobreza, prostituição e
escombros. O tom, nessa parte, é quase documental, com Davis e seu fotógrafo
registrando depoimentos das tropas, como jornalistas, e vivenciando o caos da
guerra. Fica claro ainda o enfoque no fracasso militar das estratégias
norte-americanas e superioridade dos vietcongues. A câmera, durante todo longa,
busca a perfeição de enquadramentos, valendo-se especialmente de diagonais,
contrapesos de cores e luzes e movimentos suaves, sempre em atenção à
pluralidade dos elementos em tela. Há detalhes complexos de composição mesmo em
segundo e terceiro planos. Sobre a mensagem, o cineasta joga seus holofotes no
processo de brutalização bélica do homem, transformado em máquina de matar –
podendo até enlouquecer. Diria também que, no texto e subtexto, o sexismo
perpassa a discussão do roteiro, com a figura feminina desumanizada, reduzida à
invólucro sexual, até à virada de chave no derradeiro clímax.
Paths of Glory (1957) | Glória Feita de Sangue
Nota pessoal: 9,8 (excelente)
Rotten Tomatoes: 96% | IMDb: 8,4/10 | Metacritic: 90%
| Filmow: 4.4/5
Comentário: Durante a Primeira Guerra Mundial, o
alto-comando militar francês ordena que batalhões, alocados em trincheiras,
tomem dos alemães uma colina, chamada de “Formigueiro”. Porém, trata-se de uma
missão impossível e, portanto, suicida. Quando parte dos soldados se recusa a
avançar, três deles, representando os demais, são posteriormente acusados e
julgados pelo crime de covardia. Há muitas camadas, aqui. Sem dúvida, a
discussão mais central é a política, onde generais, vivendo em luxo, decidem a
vida de tropas inteiras – tidas como descartáveis. Mortes que, no fundo, só lustram
os egos dos poderosos e não servem, na prática, nem de exemplo. A razão não
impera na guerra, nem entre os indivíduos de uma mesma nação, sobressaindo-se
(tão acima) as hierarquias de poder. Kubrick foca o tema, amplia e se demora,
destacando claramente sua mensagem. Trabalha-se, ainda, o medo da morte, a
mentira, a fé e a desobediência moral. A sequência da tentativa de avanço
francês, em campo de batalha, é infernal, com hordas a morrer em vão, e outras
tantas apavoradas, nas trincheiras – toma uma pequena fatia da montagem, que
usa a maior parte de sua duração a se concentrar em diálogos, no julgamento e
suas repercussões. Uma obra, sobretudo, antiguerra. Destaco a eloquente atuação
de Kirk Douglas e a sublime cena da jovem alemã na taverna, forçada a cantar,
chorando, aos bêbados soldados franceses.
A Clockwork Orange (1971) | Laranja Mecânica
Nota pessoal: 9,9 (excelente)
Rotten Tomatoes: 87% | IMDb: 8,3/10 | Metacritic: 77%
| Filmow: 4.3/5
Comentário: No futuro, a sociedade inglesa é assolada
por gangues de jovens delinquentes que praticam a chamada ultraviolência, entre
elas, o grupo de Alex e seus drugues. Quando um de seus planos dá
errado, Alex vai preso e passa por um experimento de condicionamento
psicológico, a Técnica Ludovico, a fim de ser curado de sua sociopatia.
Polêmico, muitas vezes censurado, e brutal, o longa baseado em livro homônimo
de Anthony Burgess apresenta uma estética retrofuturista, com singulares
arquitetura, figurino e design de produção, onde as cidades são
multicoloridas e a pornografia ocupa os espaços de arte e decoração. O estilo
kubrickiano é total, com seu habitual absurdismo, atuações em êxtase (de ódio,
por exemplo), longos planos de conjunto e poucos cortes. Narrado em primeira
pessoa pelo próprio Alex, o protagonista, somos conduzidos por uma trama sem
freios morais, com cenas de abuso explícito. A violência nos enoja, causa
repulsa – e assim deve ser, para que nossas reflexões sobre o futuro de Alex
causem algum efeito. Com a introdução da Técnica Ludovico, somos questionados
sobre livre-arbítrio e natureza humana, poder estatal e consequencialismo
moral. Até onde o Estado pode condicionar detentos em nome de um bem-estar
coletivo? Haveria cura para a ultraviolência? No embate, filosofias, ciências,
religiões e políticas disputam o discurso e os corpos, neste cenário (no
mínimo) perturbador criado pelo cineasta.
Eyes Wide Shut (1999) | De Olhos Bem Fechados
Nota pessoal: 10 (perfeito)
Rotten Tomatoes: 76% | IMDb: 7,5/10 | Metacritic: 69%
| Filmow: 3.9/5
Comentário: Após sua esposa lhe contar que já teve
vontade de traí-lo com outro homem, um médico sai pelas ruas noturnas de Nova
Iorque, em época natalina, numa jornada de descoberta da própria fidelidade e seus
desejos sensuais mais íntimos. Demasiadamente subestimado, o derradeiro
trabalho de Kubrick é, ao meu ver, perfeito. Cada não-corte, cada segundo
estendendo as cenas, extrai o máximo de significados possíveis, em especial
pelas brilhantes atuações de Tom Cruise e Nicole Kidman. O cineasta avança o
longa delicadamente, sem pressa, como as páginas de um livro, permitindo que o
suspense e os mistérios fisguem nossa atenção, até o minuto final. Há diversas
camadas psicanalíticas aqui: na superfície, usamos máscaras sociais, ostentando
status, aparências, posições de poder e dinheiro, mesmo em papeis de
marido e esposa. Porém, no íntimo, nossos desejos instintivos e emoções, para
além das convenções sociais, fogem do nosso autocontrole. Quando esses desejos
(“proibidos” de emergir) são verbalizados, nossos mitos (como o próprio
casamento) entram em xeque. Afinal, mesmo unido em matrimônio, o casal não
deixa de sentir atração por outras pessoas. Outro ponto interessante está no
conceito de fidelidade, que pode se alterar caso a “traição” seja apenas em
forma de sonhos (reprimidos e, por isso, indicando querências reais) ou mesmo
pensamentos conscientes. O Natal, que ilustra boa parte da onírica fotografia,
com muitos pisca-piscas, aparece como símbolo do capitalismo e materialização
de desejos. No todo, este thriller erótico, recheado de nudez e voyerismo,
carrega subtextos gritantes, provocando inúmeros tabus da sexualidade humana.
The Shining (1980) | O Iluminado
Nota pessoal: 10 (perfeito)
Rotten Tomatoes: 83% | IMDb: 8,4/10 | Metacritic: 66%
| Filmow: 4.3/5
Comentário: Jack, com antecedentes de alcoolismo, é
contratado como zelador do famoso Hotel Overlook, onde pretende escrever um
livro, durante um inverno rigoroso e nevado, residindo durante longas semanas
apenas com sua esposa e seu filho “iluminado”, que possui sentidos
sobrenaturais. Fortemente criticado em sua estreia, até mesmo por Stephen King,
cujo romance homônimo serviu de base à Kubrick, o filme ganhou status de
obra-prima do terror psicológico ao longo das décadas. Com o auxílio da trilha
sonora, a tensão é constante, mesmo em planos aparentemente inofensivos.
Constrói-se, na antecipação, uma atmosfera diabólica, como quando Danny, filho
de Jack, pedala em seu triciclo, por cômodos e corredores desertos, numa das
cenas mais clássicas do cinema. É dito que o hotel fora erguido onde jaz um
cemitério indígena, e que povos nativos da região lutaram contra sua construção
– sendo, pelo que se indica, assassinados. Assim, o imenso edifício carrega o
sangue (e a maldição) dessas antigas tribos. Esses fantasmas, reais ou
imaginários, aliados ao ambiente depressivo e solitário, atiçam as tendências
alcoólatras (e violentas) de Jack, puxando-o à loucura. A atuação de Jack
Nicholson é aterradora. No subtexto, o hotel é uma variável do mundo real aos
gatilhos que desencadeiam o lado mais sombrio das pessoas, tornando-as
irreconhecíveis e mesmo perigosas. Portanto, há a trama superficial, onde as
peças se movem, e a camada metafórica, psicológica. Outro charme, na fotografia
da obra, é o uso da Steadicam, pioneiro, tornando suave e bem-controlado
o movimento de câmera.
2001: A Space Odyssey (1968) | 2001: Uma Odisseia no Espaço
Nota pessoal: 10 (perfeito)
Rotten Tomatoes: 92% | IMDb: 8,3/10 | Metacritic: 84%
| Filmow: 4.2/5
Oscar: melhores efeitos visuais.
Comentário: Após um monólito negro surgir entre um
grupo de australopitecos, isto é, nossos ancestrais, há milhões de anos, uma
ideia lhes surge à mente: “e se começássemos a usar ferramentas?” De ossos,
para bater e matar, passamos a instrumentos muito mais complexos, como naves
espaciais. No ano de 2001, o mesmo (ou outro) monólito é encontrado, enterrado
na Lua. Por certo, propositalmente, para que a humanidade, em avançado grau de
evolução, pudesse descobri-lo. A obra-prima de Kubrick – e da ficção-científica,
no geral – intriga e fascina, com uma estética sublime e mensagens filosóficas
enigmáticas. O ritmo, na maior parte do longa, é extremamente lento, com
pouquíssimos diálogos, deixando que o espetáculo audiovisual fale por si. No
lugar de explicações verbais, temos signos abstratos ou mesmo um balé de
satélites no espaço, como quando toca Danúbio Azul. Outro destaque da
trilha sonora é Assim Falou Zaratustra, de Richard Strauss, a simbolizar
a subida de degrau na escala da evolução humana, em paralelo ao livro de
Nietzche. Há ainda sons assombrosos, com um coral macabro, criando uma
atmosfera de puríssimo terror. “Personificando” este medo, temos o vilão, uma
inteligência artificial chamada HAL 9000, que “não comete erros”. A elipse, que
marca o corte seco do osso pré-histórico à nave espacial, no primeiro ato, é a
maior da História do cinema, temporal e simbolicamente, pelo poder metafórico:
é como se um único corte ilustrasse aonde a “ferramenta” nos levou. A dúvida,
sobre a função que desempenha o misterioso monólito, é aparentemente clara: empurrar-nos
evolutivamente. Porém, quem são (e como se comportam) as entidades que o
construíram, permanece uma incógnita.
Filmografia
completa do diretor:
1999
– Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados)
1987
– Full Metal Jacket (Nascido Para Matar)
1980
– The Shining (O Iluminado)
1975
– Barry Lyndon (Barry Lyndon)
1971
– A Clockwork Orange (Laranja Mecânica)
1968
– 2001: A Space Odyssey (2001: Uma Odisseia no Espaço)
1964
– Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying
and Love the Bomb (Dr. Fantástico)
1960
– Spartacus (Spartacus)
1957
– Paths of Glory (Glória Feita de Sangue)
1956
– The Killing (O Grande Golpe)
1955
– Killer's Kiss (A Morte Passou Por Perto)
1953
– Fear and Desire (Medo e Desejo)
FONTES: todos os filmes
acima, em negrito;
Os vídeos, no YouTube: “STANLEY
KUBRICK”, do Canal CINEMARDEN; “Como Stanley Kubrick Faz Um Filme!”,
do Canal Gustavo Cruz; “Como Stanley Kubrick fazia seus filmes”, do
Canal Gaveta; “Por que O ILUMINADO é bom? - Super Vale Crítica Especial
(desvendando os segredos)”, do Canal Super 8; “O primeiro, segundo e
terceiro atos de 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968)”, do Canal Elegante.
Rotten Tomatoes; IMDb;
Metacritic; Filmow; Wikipédia.
¹ “This Iconic Stanley
Kubrick Scene Took 148 Takes to Get Right”, de Lloyd Farley, pela Collider:
collider.com/stanley-kubrick-the-shining-scene-guinness-world-record/
² “O que torna Stanley
Kubrick um eterno gênio do cinema?”, de Vitória Campos, pela Rolling Stone
Brasil:
rollingstone.uol.com.br/noticia/o-que-torna-stanley-kubrick-um-eterno-genio-do-cinema-lista/
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