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quarta-feira, 20 de novembro de 2019

CARTOLA: comentando a discografia completa

20 de novembro de 2019
Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia

fonte da imagem: aescotilha.com.br

            Angenor de Oliveira é Cartola, histórico sambista carioca, vivo de 1908 a 1980, responsável por grandes clássicos da música popular brasileira. Sempre de óculos escuros e cigarro, o compositor versava sobre os sentimentos mais fundos do espírito humano, entre a alegria e o choro. Apesar de não ter concluído os estudos, suas composições estão costumeiramente entre as mais belas de todo cancioneiro de nosso samba. Suas mãos de pedreiro acariciavam o violão com plena delicadeza; sua voz, amortecia os corações; suas letras e melodias, até hoje, muitas décadas após sua morte, visitam as mentes dos amantes da boa música.
Ainda na pré-adolescência, mudou-se com os pais para o Morro da Mangueira, onde conheceu as rodas de samba e a boemia. Não demorou muito para começar a trabalhar, tendo em vista as dificuldades financeiras da família. Na construção civil, passou a usar um chapéu-coco (para evitar que restos de cimento lhe caíssem na cabeça), o que rendeu o apelido de Cartola, levado ao longo de sua trajetória. Com Carlos Cachaça, seu maior parceiro de composições, e outros sambistas, fundou o Bloco dos Arengueiros, que veio a se tornar, em 1928, a Estação Primeira de Mangueira, uma das mais célebres escolas de samba do Rio de Janeiro. Cartola foi quem deu o nome “Estação Primeira” e elegeu as cores verde e rosa, símbolos da escola. Na mesma época, conheceu Heitor Villa-Lobos e Noel Rosa. Suas composições, muitas vezes, eram vendidas (ainda que o compositor exigisse seu nome nos créditos) e acabaram por parar na voz de grandes personalidades da música, como Francisco Alves, grande cantor brasileiro da primeira metade do século XX, e Carmen Miranda, sucesso internacional.
Foi então que vieram os tempos difíceis. Cartola contraiu meningite e ficou terrivelmente doente. Saiu da Mangueira, rendeu-se às bebidas, perdeu os dentes e teve uma afecção no nariz, que alterou a morfologia do órgão. Nesse período, trabalhou lavando carros e vigiando um edifício em Ipanema. O sumiço levou o povo a pensar que o músico havia falecido. Quem fez o compositor ressurgir aos holofotes foi o jornalista Sérgio Porto, que o encontrou nas péssimas condições, com o macacão do serviço de lavador. A partir daí, as apresentações em rádios e matérias em revistas e jornais se tornaram frequentes, recolocando o velho sambista de volta no estrelato. A boa fase coincidiu com o encontro e a permanência de Dona Zica na vida de Cartola. Embora não tenham tido filhos biológicos, o amor dos dois prevaleceu até o fim. Juntos, fundaram o Zicartola, que unia a comida de Zica e a música de Cartola, que atuava como uma espécie de mestre de cerimônia. O restaurante se tornou ponto de encontro histórico entre grandes nomes do samba e da bossa-nova. Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola, ainda bem jovem, frequentavam o local.
Nos últimos 6 anos de vida, portanto na velhice, o sambista lançou seus quatro únicos álbuns de estúdio. O sucesso foi astronômico. Publicados em 1974 e 1976, os dois primeiros discos fizeram história e alçaram o nome de Cartola ao panteão do samba. O mundo é um moinho, As rosas não falam, Preciso me encontrar (de Candeia), Tive sim e O Sol nascerá fazem parte dessas obras. Todos, sambas clássicos. Verde Que Te Quero Rosa, de 1977, e Cartola 70 anos, de 1979, completam a discografia, trazendo sambas igualmente belos, como Autonomia, minha favorita, e Silêncio de um cipreste.
Tendo em vista a qualidade de sua arte, seja enquanto letrista, melodista, cantor ou violinista, vale a pena empregar alguns minutos de nosso tempo a conhecer as canções deste grande poeta. Na sequência, apresento meu comentário acerca de cada um dos discos de Cartola.

 
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ÁLBUNS SOLO:


Cartola (1974)

Nota pessoal: 9,6 (excelente)
Gênero: Samba. Gravadora: Discos Marcus Pereira.

1.       "Disfarça e Chora" (Cartola, Dalmo Castello)
2.       "Sim" (Cartola, Oswaldo Martins)
3.       "Corra e Olhe o Céu" (Cartola, Dalmo Castello)
4.       "Acontece" (Cartola)
5.       "Tive Sim" (Cartola)
6.       "O Sol Nascerá" (Cartola, Elton Medeiros)
7.       "Alvorada" (Cartola, Carlos Cachaça, Hermínio B. de Carvalho)
8.       "Festa da Vinda" (Cartola, Nuno Veloso)
9.       "Quem Me Vê Sorrindo" (Cartola, Carlos Cachaça)
10.    "Amor Proibido" (Cartola)
11.    "Ordenes e Farei" (Cartola, Aluyzio Dias)
12.    "Alegria" (Cartola)

Comentário: O álbum de estreia do lendário sambista, já na terceira idade, redescoberto pelo mundo, é completo. As canções versam sobre o coração do artista, do cantor, do compositor, ferido, apaixonado, alegre. O pranto e o sorriso se entrecruzam em diversos instantes do disco. Disfarça e Chora, que abre o trabalho, conta o causo de uma “triste senhora”, como diz a letra, a chorar por não ter ido até “a pessoa que tanto queria” no ensaio. Pessoa que partiu com outra “antes mesmo de raiar o dia”.  Segundo Cartola, seu pranto “vai molhar o deserto”. São letras inspiradas, de melodias riquíssimas, que contagiam. Impossível ficar parado. Em Tive Sim, o músico canta: “Outro grande amor, antes do teu / Tive, sim / Mas comparar com o teu amor, seria o fim”. Há inspiração nos amores, na beleza do céu, no morro, na vida que se desenrola. O vocal de Cartola não peca; remete, no jeito de cantar, aos antigos cantores. Na parte instrumental, podemos ouvir muitas cordas; violões, cavaquinho, trombone, flauta, surdo, pandeiro, cuíca, caixa de fósforo, tamborim, agogô, caxixi, ganzá e reco-reco[i]. Há um coral também. Samba de qualidade, seja em letra, melodia, vocal e instrumental.


Cartola (1976)
 
Nota pessoal: 10,0 (perfeito)
Gênero: Samba. Gravadora: Discos Marcus Pereira.

1.       "O Mundo É um Moinho" (Cartola)
2.       "Minha” (Cartola)
3.       "Sala de Recepção" (Cartola / participação: Creusa)
4.       "Não Posso Viver Sem Ela" (Cartola, Bide)
5.       "Preciso Me Encontrar" (Candeia)
6.       "Peito Vazio" (Cartola, Elton Medeiros)
7.       "Aconteceu" (Cartola)
8.       "As Rosas não Falam" (Cartola)
9.       "Sei Chorar" (Cartola)
10.    "Ensaboa" (Cartola / participação: Creusa)
11.    "Senhora Tentação" (Silas de Oliveira)
12.    "Cordas de Aço" (Cartola)

Comentário: Se o primeiro disco de Cartola já ostentava uma qualidade ímpar, o segundo é simplesmente inigualável, perfeito. Mantendo a técnica instrumental de altíssima virtude e o vocal característico do compositor, o álbum de 1976 leva o samba à uma profundidade lírica que traduz as dores mais genuínas do poeta. Várias faixas versam sobre as dificuldades da vida – e não escondem o choro. O Mundo É Um Moinho, que abre a obra, ocupa lugar de destaque na História do cancioneiro brasileiro, apresentando uma visão de mundo destruidora, um pessimismo schopenhaueriano: “Ouça-me bem, amor / Preste atenção, o mundo é um moinho / Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos / Vai reduzir as ilusões a pó”. Outro clássico inquestionável está na oitava faixa, As Rosas Não Falam, um dos mais lindos sambas de todos os tempos: “Volto ao jardim / Com a certeza que devo chorar / Pois bem sei que não queres voltar para mim / Queixo-me às rosas / Que bobagem, as rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam / O perfume que roubam de ti”. Preciso Me Encontrar, composição de Candeia para o disco, também se tornou clássica, insuperável na voz de Cartola: “Deixe-me ir, preciso andar / Vou por aí a procurar / Rir pra não chorar”. Em Sala de Recepção e Ensaboa, inspirada em refrão de lundu cantada por seu avô materno, Creusa, filha de criação de Cartola, divide os vocais com o mestre.[i] No todo, o álbum é uma obra que merece ser visitada, revisitada, aplaudida e reverenciada.


Verde Que Te Quero Rosa (1977)
 
Nota pessoal: 9,2 (excelente)
Gênero: Samba. Gravadora: RCA Victor.

1.       "Verde que te quero rosa " (Cartola, Castelo)
2.       "A canção que chegou" (Cartola, Nuno Veloso)
3.       "Autonomia" (Cartola)
4.       "Desfigurado" (Cartola)
5.       "Escurinha" (Geraldo Pereira, Arnaldo Passos)
6.       "Tempos idos" (Cartola, Carlos Cachaça)
7.       "Pranto de poeta" (Guilherme de Brito, Nelson Cavaquinho)
8.       "Grande Deus" (Cartola)
9.       "Fita meus olhos" (Cartola, Osvaldo Vasquez)
10.    "Que é feito de você" (Cartola)
11.    "Desta vez eu vou" (Cartola)
12.    "Nós dois" (Cartola)

Comentário: Embora as canções deste terceiro disco não tenham feito tanto sucesso quanto as músicas presentes nos álbuns anteriores, todas as faixas apresentam qualidade extraordinária. Talvez seja o disco mais conceitual de Cartola, com capa e título mais trabalhados. Os temas continuam a permear entre as dores e os prazeres da vida, mas também englobam a angústia da velhice (em Que é feito de você, samba composto em 1958[i]), a misericórdia de Deus, homenagens à Estação Primeira de Mangueira, entre outros. Em Pranto de poeta, Cartola canta acompanhado por Nelson Cavaquinho (que chega a cantar um verso da canção, de sua autoria com Guilherme de Brito). Em Nós Dois, última faixa, o sambista celebra o próprio casamento com Dona Zica. Destaco também as excelentes Desfigurado e A canção que chegou, mas nada se compara à dramática Autonomia, quiçá a mais bela canção de Cartola, ao lado dos grandes clássicos. Com arranjo (dos mais belos possíveis) e acompanhamento ao piano de Radamés Gnattali (mestre de Tom Jobim), Autonomia coloca Cartola no centro de uma orquestra. Tudo nela funciona na mais pura perfeição: melodia, letra, orquestra e, principalmente, a performance vocal do sambista. No geral, o disco começa poderoso, mas acaba decaindo – ainda que minimamente – em músicas de menor brilho, o que não coloca a obra no patamar de suas predecessoras (que estão, vale lembrar, entre os maiores clássicos da música popular brasileira).


Cartola 70 Anos (1979)
 
Nota pessoal: 8,9 (ótimo)
Gênero: Samba. Gravadora: RCA Victor.

1.       "O inverno do meu tempo" (Cartola, Roberto Nascimento)
2.       "A cor da esperança" (Cartola, Roberto Nascimento)
3.       "Feriado na roça" (Cartola)
4.       "Ciência e arte" (Cartola, Carlos Cachaça)
5.       "Senões" (Cartola, Nuno Veloso)
6.       "Mesma estória" (Cartola, Elton Medeiros)
7.       "Fim de estrada" (Cartola)
8.       "Enquanto Deus consentir" (Cartola)
9.       "Dê-me graças, senhora" (Cartola, Cláudio Jorge)
10.    "Evite meu amor" (Cartola)
11.    "Silêncio de um cipreste" (Cartola, Carlos Cachaça)
12.    "Bem feito" (Cartola)

Comentário: O último álbum solo de inéditas de Cartola reúne uma série de ótimos sambas, menos conhecidos, mas de fina qualidade e delicadeza. O amor, com seus traumas, sua inspiração, sua memória – que quebra e alegra o coração do poeta –, continua basilar na arte do músico. Há duas canções que remetem ao cristianismo: Enquanto Deus consentir, que fala até de catecismo e Jesus; e Dê-me graças, senhora, em homenagem à Nossa Senhora. De meu gosto particular, destaco três faixas: O inverno do meu tempo, de um lirismo maravilhoso; Ciência e arte, que homenageia brilhantemente as grandes mentes pensantes de nosso país (“Quero neste pobre enredo / Revivê-los, glorificando os nomes teus / Levá-los ao panteão dos grandes imortais / Pois merecem muito mais”), com citação direta ao físico César Lattes e ao polímata Pedro Américo; por fim, Silêncio de um cipreste, minha favorita do álbum, onde Cartola canta acerca da reflexão sobre o próprio pensamento e o martírio que ele causa, passando por poderosos versos: “O pensamento é uma folha desprendida / Do galho de nossas vidas / Que o vento leva e conduz / É como a luz vacilante e certa / É o silêncio do cipreste / Escoltado pela cruz”. Em Feriado na roça, ouvimos um conto trágico, que vai da felicidade até o crime e a incerteza. No geral, o disco nos oferece doze ótimos poemas, embalados pela melodia e pela voz de Angenor.




ÁLBUNS AO VIVO/PÓSTUMOS:

Cartola Ao Vivo (1982)
“Póstumo / ao vivo”

Nota pessoal: 9,0 (excelente)
Gênero: Ao vivo; samba. Gravadora: Eldorado.

1.       "Alvorada" (Cartola, Hermínio B. de Carvalho, Carlos Cachaça)
2.       "O mundo é um moinho" (Cartola)
3.       "Sim" (Cartola, Oswaldo Martins)
4.       "Acontece" (Cartola)
5.       "Amor" (Cartola)
6.       "As rosas não falam" (Cartola)
7.       "Verde que te quero rosa" (Cartola, Dalmo Castelo)
8.       "Peito vazio" (Cartola)
9.       "Alegria" (Cartola)
10.    "O inverno do meu tempo" (Cartola, Roberto Nascimento)
11.    "O sol nascerá" (Cartola, Elton Medeiros)

Comentário: Gravado em 1978, no Ópera Cabaré, São Paulo, e lançado em 1982, portanto, após a morte de Cartola, o disco reúne onze clássicos dos quatro álbuns do compositor, que canta sem o auxílio do costumeiro coral dos discos de estúdio. A maior parte da setlist foi tirada de canções dos dois primeiros álbuns, os mais marcantes da carreira do sambista, mas Verde que te quero rosa e O inverno do meu tempo, presentes nos discos três e quatro, também marcam presença.



Cartola - Documento Inédito (1982)
“Póstumo / ao vivo”

Nota pessoal: 9,2 (excelente)
Gênero: Ao vivo; samba. Gravadora: Eldorado.

1.       "Que sejam bem-vindos" (Cartola)
2.       "Autonomia" (Cartola)
3.       "Acontece" (Cartola)
4.       "Senões" (Cartola, Nuno Veloso)
5.       "O inverno do meu tempo" (Cartola, Roberto Nascimento)
6.       "Que sejas bem feliz" (Cartola)
7.       "Dê-me graças, senhora" (Cartola, Cláudio Jorge)
8.       "Quem me vê sorrindo" (Cartola, Carlos Cachaça) 

Comentário: O disco é gravado de uma participação de Cartola em programa da Rádio Eldorado de São Paulo, meses antes de seu falecimento. Foi pedido que o próprio compositor escolhesse e comentasse brevemente as faixas. O músico inicia a obra contando sobre sua vida; onde e quando nasceu, o porquê de seu apelido etc. Entrecortando o depoimento, Cartola canta e toca ao violão cada uma das canções, o que cria um ar intimista e demonstra o talento lírico, vocal e instrumental do sambista.



Discografia completa do músico:

Álbuns solo

1979 – Cartola 70 Anos
1977 – Verde Que Te Quero Rosa
1976 – Cartola
1974 – Cartola


Álbuns ao vivo/póstumos


1982 – Cartola - Documento Inédito (ao vivo / póstumo)
1982 – Cartola Ao Vivo (ao vivo / póstumo)
 


Ouça a discografia de Cartola no Spotify:



FONTES: Todos os álbuns acima, em negrito; Wikipedia; documentário “Cartola - Música Para os Olhos”, de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira; sambaderaiz.org.


[i] sambaderaiz.org/albuns/cartola-1974/
[i] sambaderaiz.org/albuns/cartola-1976/
[i] sambaderaiz.org/albuns/verde-que-te-quero-rosa-cartola-1977/

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