Análise e comentários:
FILMOGRAFIA DE BONG JOON-HO
8
de novembro de 2021
Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia
Créditos da imagem:
Anthony Harvey/Shutterstock
Bong Joon-Ho nasceu na Coreia do Sul,
em 1969. Estudou sociologia e cinema, tendo trabalhado na direção, produção e
roteiro de seus filmes, ou seja, trata-se de um cineasta autoral, que realiza,
mas também escreve, seus próprios projetos. Em 2003, com seu segundo longa, Memórias
de um Assassino, conquistou grande repercussão internacional; em 2013, seu
primeiro trabalho em língua inglesa, Expresso do Amanhã, fez sucesso em
Hollywood. Porém, nada se compara à sua obra-prima, Parasita, de 2019,
que lhe rendeu feitos históricos, como a consagração na cerimônia de 2020 no
Oscar, tendo levado o principal prêmio da noite, o Oscar de Melhor Filme, bem
como Melhor Direção, além da Palma de Ouro no Festival de Cannes.
Sua carreira começa com dois curtas,
ainda em 1994: Incoerência e White Man. O longa-metragem de
estreia veio no ano 2000, Cão Que Ladra Não Morde, onde já podemos
perceber várias das características que o consagraram e marcaram toda sua
trajetória cinematográfica. Depois, vieram mais seis longas, em idioma coreano
e inglês, além de um ótimo segmento dentro de um filme, chamado Tokyo!,
de 2008, composto de três histórias de três diretores diferentes.
Joon-Ho critica duramente, em suas
obras, questões sociopolíticas. A principal é, por certo, a desigualdade social,
onde se abarcam os temas do desemprego, da criminalidade e do simbolismo
coercitivo de classe, onde a elite busca perpetuar privilégios e os mais pobres
lutam pela sobrevivência. Tudo isso surge literalmente ou alegoricamente nos
trabalhos do diretor. Portanto, são filmes bastante politizados, com grande
abertura de margem para discussões e estudos. Em Okja (2017), produzido
pela Netflix, a crítica atravessa a indústria pecuária – e toda publicidade em
torno dela.
Tecnicamente, sua filmografia é
marcada por uma mistura de gêneros. É difícil definir seus filmes,
classifica-los como sendo drama, suspense ou comédia. Há um pouco de tudo isso,
desde o humor ácido até elementos comuns ao terror, como violência gráfica. No
geral, o mistério se sobressai e nos envolve em cada desenrolar de cena. Essa
alternância de tom é provavelmente sua peculiaridade mais notável. Podemos
citar também os ângulos complexos e criativos, onde Bong coloca suas câmeras; a
trilha sonora que subverte as convenções; a montagem precisa, com ritmo ora
frenético, ora calmo; e a fotografia, habitualmente fria, sombria, com
abundância de chuva. No elenco, sempre bem polido e intenso, temos, em pelo
menos quatro obras, a presença de Song Kang-Ho.
Na sequência, deixo sinopse e comentários
acerca de cada um de seus projetos, do pior ao melhor, na minha opinião.
Tokyo! (2008) | Tokyo! (codireção)
Nota pessoal: 8 (ótimo)
Rotten Tomatoes: 76% | IMDb: 7,1/10 | Metacritic: 63%
| Filmow: 4/5
Comentário: Três segmentos de três distintos cineastas,
todos ambientados em Tóquio, Japão. O primeiro média-metragem é Interior
Design, de Michel Gondry, que conta a breve história de um casal a se mudar
para a capital japonesa, com elementos de surrealismo. O segundo se chama Merde,
de Léos Carax, e acompanha um homem de aspecto horrendo, que vive nos esgotos,
mas costuma sair às ruas, atazanando os civis. Somente a terceira parte é de
Bong Joon-Ho. Leva o nome de Shaking Tokyo e ilustra a vida de um homem
isolado na própria casa há mais de uma década. Certo dia, ao pedir uma pizza,
acaba se encantando pela entregadora – no instante em que um terremoto abala os
aposentos e faz a moça desmaiar. É o melhor segmento do filme, com a habitual
mistura de gêneros do diretor e seu olhar sensível e apurado. No todo, o longa
é meio desbalanceado, tendo em vista que cada diretor tem um estilo bem
peculiar, mas as histórias funcionam bem e nos prendem do começo ao fim.
괴물 (2006) | O Hospedeiro
Nota pessoal: 8,1 (ótimo)
Rotten Tomatoes: 93% | IMDb: 7,1/10 | Metacritic: 85%
| Filmow: 3.6/5
Comentário: Anos após um cientista estadunidense
ordenar o despejamento de substâncias tóxicas no rio Han, um monstro surge das
águas e leva o caos à cidade. Essa superprodução nos apresenta a uma família
excêntrica: um idoso e seus três filhos, sendo uma arqueira olímpica, um
universitário desempregado e um adulto imaturo, pai da única criança do grupo,
uma menina. Apesar de muitas conveniências de roteiro, o desenrolar dos atos é
surpreendente, com um ritmo por vezes acelerado, por vezes contemplativo. Ação
e humor são intercalados por drama, terror e suspense. O monstro é bem-feito, cheio
de efeitos visuais e sonoros. Por trás da trama, a crítica social: eis as
consequências do desabono do meio-ambiente – e da ideologia de entender outros
países, no caso a Coréia do Sul, como um terreno baldio, um depósito de entulho
radioativo. Estado e técnica são representados quase como máquinas insensíveis
à dor humana. No geral, o diretor prima em orquestrar planos magníficos, com
picos altíssimos de emoção e tensão.
플란다스의 개 (2000) | Cão Que Ladra Não Morde
Nota pessoal: 8,4 (ótimo)
Rotten Tomatoes: 88% | IMDb: 7/10 | Metacritic: 66% |
Filmow: 3.6/5
Comentário: Um marido desempregado não suporta os
latidos de um cão da vizinhança. Nisso, decide se livrar do animal, mas não
espera pelas consequências de seus atos, que desencadeiam um “efeito bola de
neve”. Enquanto isso, uma jovem, que sonha em aparecer na TV, ajuda donos de
cães perdidos. Com dois núcleos de protagonistas, que se convergem
progressivamente, o primeiro longa de Bong Joon-Ho coloca seu personagem
principal em posição ambígua: ao mesmo tempo em que é maltratado injustamente
pela esposa grávida, deseja o sumiço [criminoso] do cachorro vizinho –
despertando nossa compaixão e nossa repulsa. Ainda que o filme comece dizendo,
em letreiro, que nenhum cão foi ferido, mas sim supervisionado por seus donos
reais e veterinários, algumas cenas causam mal-estar. Fora isso, a direção é
milimétrica, com planos complexos e detalhistas. Cada elemento da narrativa
desempenha sua função, ou seja, nada está por acaso, mas sustenta propósitos.
Há muito humor ácido, mas não deixa de carregar drama e críticas sociais.
Destaco a trilha sonora, composta por instrumentais de jazz, o que traz uma
atmosfera mais leve. Uma ótima estreia do diretor.
설국열차 (2013) | Expresso do Amanhã
Nota pessoal: 8,6 (ótimo)
Rotten Tomatoes: 94% | IMDb: 7,1/10 | Metacritic: 84%
| Filmow: 3.5/5
Comentário: Na tentativa de frear o aquecimento
global, o planeta Terra inteiro acaba congelado. A humanidade toda sobrevive
dentro de um trem, com motor de energia infinita, em alta velocidade. Falado em
inglês e coreano, o longa é uma grande alegoria da nossa sociedade, dividida em
classes econômicas e controlada pelo Estado, que detém o monopólio da
violência. Visualmente, o filme é impactante, com uma cenografia específica e
cheia de detalhes para cada compartimento da locomotiva. No fundo, em péssimas
condições, “os pobres”; na frente, vivendo em mordomia e privilégios, a elite.
O plot se dá quando a classe menos abastada, liderada pelo protagonista,
vivido por Chris Evans, decide tomar os vagões, em uma espécie de revolução.
Não é muito realista, o tom é bastante caricatural, especialmente a personagem
de Tilda Swinton, mas as metáforas funcionam muito bem. Por isso, para
aproveitar a obra, é necessária uma boa dose de suspenção da descrença.
Podemos, ainda, enxergar críticas ao modelo educacional dogmático e que preza
pelo culto a um líder – no caso, só se sabe o nome do sujeito, dono do trem,
como se fosse uma figura divina. No geral: intenso, visceral, violento e
filosófico, mas sem deixar de carregar elementos dramáticos e de outros
gêneros.
옥자 (2017) | Okja
Nota pessoal: 9 (excelente)
Rotten Tomatoes: 86% | IMDb: 7,3/10 | Metacritic: 75%
| Filmow: 4/5
Comentário: Uma multinacional cria porcos gigantes,
geneticamente modificados em laboratório, e os distribui a fazendeiros ao redor
do mundo. Uma garotinha sul-coreana cria laços afetivos poderosos com a
criatura, que ela chama de Okja, mas não espera que a empresa tenha planos de
levar os animais ao abatedouro. A crítica à indústria da carne, indiferente aos
desejos e emoções dos bichos, é evidente. Até o marketing enganador é
muito bem explorado. O animal em questão parece mais uma mistura de hipopótamo
com cachorro, sendo meigo e espalhafatoso. Conquista nossos corações instantaneamente.
O filme tem um quê de Disney, porém, acaba nos chocando pela violência, em
certas cenas. Violência muito semelhante à que ocorre no mundo real com o gado,
por exemplo, mas que é tão naturalizada e maquiada que a gente nem se
questiona. Há muitas cenas de ação, humor e drama, daqueles que nos levam às
lágrimas. Bem como em Expresso do Amanhã (2013), o diretor faz
caricaturas nada realistas de alguns personagens, mas que caem bem na atmosfera
fabulosa da obra.
살인의 추억 (2003) | Memórias de um Assassino
Nota pessoal: 9,2 (excelente)
Rotten Tomatoes: 95% | IMDb: 8,1/10 | Metacritic: 82%
| Filmow: 4.2/5
Comentário: Pela primeira vez na Coreia do Sul, a
polícia se depara com homicídios causados por um serial-killer. Suas
vítimas: mulheres em dias chuvosos. Baseado em uma história real, ocorrida
durante o período ditatorial do país, o filme subverte os gêneros. Aqui, os
policiais não são tão perspicazes quanto a gente espera; o suspense carrega
elementos humorísticos, desconstruindo a atmosfera de seriedade contínua; o
foco não está na “descoberta do assassino”, mas sim na “não descoberta” e suas
repercussões psicológicas. Um vácuo angustiante ocupa a identidade do culpado e
cede espaço a pistas falsas ou forjadas. Sem respostas efetivas, a força de
investigação acumula cada vez mais frustração e ódio, com a pressão da mídia
por conclusões. Isso leva os policiais a descontar em três suspeitos – todos
mantidos presos por argumentos frágeis. Há tortura física e psíquica, tanto que
induz um inocente a confessar os crimes. Para eles, não importa a verdade, mas
encontrar “algum culpado”. O final pode ser decepcionante – propositalmente
decepcionante. Não é um erro do filme, mas parte essencial de seu plot.
Em resumo: mistério denso, pesado; cenas de ação, comédia e muita voadora no
peito.
마더 (2009) | Mother - A Busca Pela Verdade
Nota pessoal: 9,7 (excelente)
Rotten Tomatoes: 96% | IMDb: 7,8/10 | Metacritic: 79%
| Filmow: 4.1/5
Comentário: Um garoto com deficiência intelectual, um
tanto avoado, é condenado a prisão pelo assassinato de uma jovem. Nisso, sua
mãe parte em busca do verdadeiro assassino para, assim, inocentar o filho. O
filme é um tríler poderoso, com um mistério instigante: quem matou a garota?
Por que o corpo da vítima, ao invés de ser escondido, ficou exposto na
cobertura de uma casa, à vista de todo o bairro? A mãe, descrente da ajuda
policial, que já havia dado o caso por encerrado, age como um detetive,
colhendo pistas e provas. Muitos objetos ajudam a recriar o crime e apontam o
culpado. Isso quando as pistas não são falsas e levam a caminhos distorcidos. O
principal MacGuffin, isto é, o objeto que mais move a trama, é o celular
perdido da menina assassinada. Somos conduzidos a desconfiar de suspeitos e
descobrir segredos velados pelo passar do tempo. A frágil memória do filho
condenado é um dos grandes empecilhos da resolução do caso. Destaco a excelente
montagem, que cria um ritmo imersivo e, por vezes, une cenas do passado com um
encaixe poético nos acontecimentos presentes. Os personagens são muito bem
construídos, bem como a razão dos elementos em cena. A atuação da mãe é
riquíssima e eleva a qualidade do longa, num todo.
기생충 (2019) | Parasita
Nota pessoal: 10 (perfeito)
Rotten Tomatoes: 98% | IMDb: 8,6/10 | Metacritic: 96%
| Filmow: 4.5/5
Oscars: melhor filme, melhor direção, melhor roteiro
original e melhor filme internacional.
Comentário: Ao ser convidado a dar aulas particulares
de inglês a uma garota de classe alta, um jovem começa a bolar planos para
empregar toda sua família, então desempregada, na casa dos patrões. Fenômeno de
crítica e público, Parasita foi o primeiro longa em língua não-inglesa a
vencer o Oscar de Melhor Filme – além da Palma de Ouro, em Cannes. Trata-se da
obra-prima de Bong Joon-Ho, com uma mistura equilibrada de gêneros: começa em
tom despretensioso, de comédia, mas vai se colorindo de suspense, mistério e
reflexões mais profundas. Em determinado momento, a tensão cresce tanto que nos
deixa presos, na ponta da poltrona – um controle digno de filmes do mestre
Hitchcock. Somos imergidos plenamente, vibramos por cada personagem. Em camadas
de interpretação, o filme aborda o disparate da qualidade de vida entre classes
opostas. Para os ricos, um dia de chuva, por exemplo, pode ser uma “benção”;
para os pobres, pode significar enchentes, perdas, destruição, desgraça. A
desigualdade social se reflete psicologicamente por meio do brutal
ressentimento de quem não tem condições econômicas adequadas e do sentimento de
superioridade dos mais abastados. É um conflito que se estende em violência
simbólica; sensação de pertencimento ou não-pertencimento; sonhos financeiros
impossíveis e, por isso, frustrantes. É preciso parasitar entre migalhas,
sujeitar-se ao servilismo para poder sobreviver em um meio social como esse,
tão comum à realidade.
Filmografia
completa do diretor:
2019
- 기생충 (Parasita)
2013 - 설국열차 (Expresso do Amanhã)
2009 - 마더 (Mother - A Busca Pela Verdade)
2008 - Tokyo!
*vários diretores
2006 - 괴물 (O Hospedeiro)
2003 - 살인의 추억 (Memórias de um Assassino)
2000
- 플란다스의
개
(Cão Que Ladra Não Morde)
FONTES: todos os filmes acima, em negrito; Wikipédia; Rotten Tomatoes; IMDb; Metacritic e Filmow; o vídeo “Memórias de um Assassino (2003) - Crítica do filme de Bong Joon-ho” do canal Dalenogare Críticas, no YouTube; o vídeo “Mother - A Busca Pela Verdade | Um Filme Intrigante e Surpreendente”, do canal Cinema Ferox, no YouTube; o vídeo “Bong Joon-ho – Atrativo e Simbólico”, do canal Plano Geral, no YouTube; BRAZ, Rafael. “Quem é Bong Joon Ho, o coreano que fez história no Oscar com "Parasita"? in A Gazeta. Disponível em: agazeta.com.br/colunas/rafael-braz/quem-e-bong-joon-ho-o-coreano-que-fez-historia-no-oscar-com-parasita-0220
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