Resenha de:
EU
& OUTRAS POESIAS
DE AUGUSTO DOS ANJOS
4 de janeiro de 2022
Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia
Augusto dos Anjos, 1985. Por: Flávio Tavares, Acervo Academia Paraibana de Letras.
Eu,
publicado em 1912, é o título do único livro de Augusto dos Anjos, nascido em
1884 e morto prematuramente, de pneumonia, aos 30 anos no ano de 1914.
Postumamente, outros de seus poemas foram reunidos e lançados sob o nome de Eu
e Outras Poesias, constituindo toda a breve antologia do poeta. A versão
que li, da Editora Martin Claret, ainda traz uma introdução, comentando estilo
e temáticas do autor, o “Elogio de Augusto dos Anjos”, por Órris Soares, e uma
subdivisão das “Outras Poesias”, intitulada “Poemas Esquecidos”, além de
complementos de leitura e material para estudo.
Sobre o autor, podemos
entende-lo como o exemplo mais considerado (por vezes, único) da poesia
pré-moderna brasileira. Apesar de beber das formas clássicas, com sonetos e
rimas, influenciado certamente pelos parnasianos e simbolistas que o
precederam, o vocabulário de Augusto conta com uma modernização – ao incluir
termos científicos, da Biologia, por exemplo, e traços de expressionismo,
tendência vanguardista da época. Por isso, é difícil enquadrá-lo em
uma escola literária específica e mais simples destaca-lo dentro de um “período
de transição”, anterior à Semana da Arte Moderna, de 1922, marco inicial do
modernismo nas artes nacionais, e posterior às convenções formais arcaicas, ou
seja, como um pré-moderno por excelência.
Paraibano de Sapé, nome
atual de Engenho Pau d'Arco, o poeta foi um voraz estudioso, formando-se
bacharel em Direito e dominando filósofos, como Haeckel e Herbert Spencer.
Tendo lecionado por anos no Rio de Janeiro e Minas Gerais, ficou mais conhecido
pelos espantosos versos – admirado pelo povo e pela academia durante as décadas
seguintes à sua morte. Apesar de ter se casado, é curioso notar que o amor é praticamente
uma nota de rodapé em sua obra, aparecendo com um pouco mais de clareza na
última parte, “Poemas Esquecidos”, que decaem visivelmente de criatividade em
comparação ao altíssimo nível de “Eu” e de “Outras Poesias”.
A forma do livro consiste principalmente de tercetos, quartetos e sextetos,
com o uso habitual de sonetos, e esquemas de rimas bem arquitetados. Reflexos
das convenções poéticas da época, que ainda não haviam seguido os versos
descontruídos, livres de métrica e rima, de fontes modernas que brotavam no
exterior, como Walt Whitman, o livro se destacou especialmente por seu
conteúdo.
Ao invés da exaltação das belezas do amor e da Natureza, o que vemos
aqui é a fealdade, a crítica ácida à sociedade corrompida, o horror, a
decadência, o sujo e o podre. Isso não significa que não haja beleza em sua
arte – há, sobretudo nas formas como ele se vale desses objetos declaradamente
horríveis para imprimir significações grandiosas, ousadas, inusitadas e
profundas. O poeta leva a admiração e o fascínio àqueles que quase nunca
recebem os méritos de seus dons, como o verme a roer a carne dos defuntos.
Fala-se de morte, doença, angústia, solidão, azar; sobre o não-ser (ou
quase-vir-a-ser), dentre temas filosóficos e mundanos, tornando visível aquilo
que o mundo tenta esconder debaixo do tapete social.
Destaco o soneto O
Lamento das Coisas, certamente um dos melhores que li em toda minha vida.
Integrante das “Outras Poesias”, o poema impacta em cada verso, pensado a
reproduzir a angústia de um futuro rompido, de potenciais imensos e
maravilhosos subtraídos ao vazio, desperdiçados na não-realização daquilo que
poderia ser, mas não foi. Uma espécie de sublime metafísico de um amanhã
desmontado. Causa-me arrepios, além d’um turbilhão de pensamentos sobre a
infinidade de aplicações simbólicas dos versos em nós. Eis a poesia:
Triste, a escutar, pancada por pancada,
A sucessividade dos segundos,
Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos,
O choro da Energia abandonada!
É a dor da Força desaproveitada,
— O cantochão dos dínamos profundos.
Que, podendo mover milhões de mundos,
Jazem ainda na estática do Nada!
É o soluço da forma ainda imprecisa...
Da transcendência que se não realiza...
Da luz que não chegou a ser lampejo...
E é, em suma, o subconsciente aí formidando
Da Natureza que parou, chorando,
No rudimentarismo do Desejo!
Por outro lado, ainda na temática do não-ser, um exemplo que gosto muito
é A um Gérmen, que exalta a desventura da existência, em contraposição à
sorte da inexistência – aqui, uma “sorte” relativa, provisória, que tende ao
devir do ser, isto é, do estado anterior ao nascimento para a vida. O Nada é
visto, assim, por Augusto como algo positivo; e a vida, uma série de desgraças.
Talvez por isso ele tenha se afeiçoado tanto aos tons fúnebres. Apesar da
dureza do tema, que pode incomodar leitores menos habituados, a forma com que o
poeta exorta o gérmen a não progredir é de um brilho raríssimo, como se, por
empatia, quisesse alertar as consequências de dor e sofrimento que, sempre, em
maior ou menor medida, existem a todos os seres sencientes, do início ao fim:
Começaste a existir, geléia crua,
E hás de crescer, no teu silêncio,
tanto
Que, é natural, ainda algum dia, o
pranto
Das tuas concreções plásmicas flua!
A água, em conjugação com a terra nua,
Vence o granito, deprimindo-o... O
espanto
Convulsiona os espíritos, e, entanto,
Teu desenvolvimento continua!
Antes, geléia humana, não progridas
E em retrogradações indefinidas,
Volvas à antiga inexistência calma!...
Antes o Nada, oh! gérmen, que ainda
haveres
De atingir, como o gérmen de outros
seres,
Ao supremo infortúnio de ser alma!
São poemas que agitam nosso espírito e nos levam a caminhos improváveis
de encantamento. Como digo em meu livro, em coautoria com Ester, Nascente:
“[A poesia] faz da angústia uma boa aliada, e a tira da realidade, /
Transformando-a na beleza singular de uma exímia arte, / Ganhando espaço entre
o amor e a amizade, / Encontrando o seu valor e deixando a contraparte”. Em Augusto,
as trevas do existir ganham os holofotes e, impressionantemente, ensinam valiosas
lições e peculiares pontos de vista. É uma forma de passar do preconceito ao
conceito da razão ou desrazão da dor humana.
Enfim, deixo seu poema mais célebre, Versos Íntimos. Não são estrofes
guiadas pela ternura primaveril dos estereótipos poéticos mais convencionais,
mas pelo ódio, pela raiva – legitimados enquanto expressões genuinamente
humanas, na poesia. Em impulso criativo, a ingratidão ganha forma e tende à
identificação dos leitores, tantas vezes acostumados às falsas gentilezas,
centros de interesse pessoal:
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de sua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Destaco ainda as seguintes poesias: Poema Negro; Queixas Noturnas;
Viagem de um Vencido e O meu Nirvana, para quem tiver interesse.
Secundariamente, indico: Vencedor, Vandalismo, Suprème
Convulsion; Louvor à Unidade; Revelação; Último Credo;
Solilóquio de um Visionário e O Fim das Coisas.
Minha experiência com a leitura, num todo, foi impactante, uma viagem
sombria, onírica e fabulosa, onde conheci o que restou do coração de um grande
poeta, que viveu – e sofreu – intensamente o seu tempo. Uma atmosfera habitada
por túmulos, sombras, vermes e vazios. Usando as palavras de Augusto, foi como
visitar “um hospital onde morreram todos os doentes”, quando o mesmo se refere
ao seu próprio coração. Cenário típico de filmes de terror, se não fossem a
genialidade e a poesia ímpar que sustentam cada silaba da jornada.
Arte: Cássio Loredano in Alfabeto Literário, Editora Capivara.
FONTES: ANJOS, Augusto dos. Eu e Outras Poesias. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004; O vídeo “Ciência & Letras - Augusto dos Anjos”, do Canal Saúde Oficial, no YouTube.
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