Resenha de:
A TRAGÉDIA DE HAMLET, PRÍNCIPE DA DINAMARCA
DE WILLIAM SHAKESPEARE
16
de maio de 2022
Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia
Visão de Hamlet, em detalhe (1893), por Pedro Américo.
A Tragédia de
Hamlet, Príncipe da Dinamarca, popularmente conhecida simplesmente como
Hamlet, é uma das maiores obras literárias dramatúrgicas do Ocidente, escrita
por William Shakespeare entre 1599 e 1600. Dividida em cinco atos, trata-se da
maior peça do poeta: literalmente, excedendo 4 horas em sua encenação integral,
e simbolicamente, com significativo consenso entre críticos e públicos. Sua
importância histórica é corroborada por Sigmund Freud, que a considerou uma das
três obras-primas da humanidade, ao lado de Édipo Rei, tragédia grega de
Sófocles, e Os Irmãos Karamázov, romance russo de Dostoievski. Até hoje,
o texto é referenciado em todo mundo e adaptado para os mais diversos meios e
contextos, incluindo o cinema.
A história é inspirada
na lenda escandinava de Amleth. No folclore nórdico medieval, o pai de Amleth
foi um rei da Dinamarca, assassinado pelo próprio irmão, que lhe usurpou o
trono e a rainha. Podemos assistir uma adaptação do original no longa O
Homem do Norte (2022), dirigido por Robert Eggers. Há ainda versões
precedentes, como a denominada Ur-Hamlet e uma de François de Belleforest, mas nenhuma
ganhou a fama e o prestígio do clássico shakespeareano, que sobreviveu ao
passar dos séculos principalmente em virtude do talento poético extraordinário
do bardo inglês.
Shakespeare nasceu em
1564 e morreu em 1616, sendo considerado o maior dos poetas e dramaturgos
britânicos. Sua influência é tanta que muitas palavras do idioma inglês
nasceram em suas peças, que são encenadas há vários séculos. Para fins de
comparação, podemos entende-lo para a Inglaterra como Dante Alighieri é para a
Itália ou Homero e Sófocles são para a Grécia. Durante boa parte da vida, viveu
no chamado período elizabetano, no centro de um Renascimento borbulhante de
criatividade e grandíssimos artistas. Sua obra pode ser dividida entre sonetos,
ou seja, poemas, e peças teatrais, que dividimos em três subgêneros: dramas
históricos, comédias e tragédias. Entre seus maiores sucessos, além de Hamlet,
cito Romeu e Julieta, Macbeth, Sonhos de uma Noite de Verão
e A Tempestade.
Para a presente
resenha, fiz uso da tradução de Lawrence Flores Pereira para o selo Penguin
Classics, da Companhia das Letras. O texto flui sem grandes solavancos,
preservando certos termos arcaicos, mas mantendo sempre o entendimento. Percebe-se
o cuidado, o primor poético da adaptação para a língua portuguesa, resultando
em momentos de extasiante beleza. A edição é bem completa, com centenas de
notas explicativas, escritas por Lawrence, que também assina uma elegante
introdução e duas notas introdutórias, sobre o texto e sobre sua tradução.
Recomendo a leitura das notas, em especial as que ficam ao fim do livro, simultaneamente
à leitura da peça, pois elas nos auxiliam em uma assimilação muito maior do
conteúdo, com contextualizações, curiosidades e revelações de simbolismos
implícitos (que faziam mais sentido ao público da época), enriquecendo a
experiência. Há ainda uma resenha do poeta, vencedor do Nobel de Literatura em
1948, T. S. Eliot.
Vale destacar também que chegaram até nossos tempos três versões do Hamlet
shakespeareano, usadas nas edições modernas: Primeiro in-quarto (Q1), Segundo in-quarto
(Q2) e Primeiro in-fólio (F1). A tradução de Lawrence busca fundir as versões
Q2 e F1, com marcações que permitem identificar versos exclusivos de uma ou
outra versão.
Hamlet e Horácio com os dois rústicos (1839), por Eugène Delacroix.
A história começa sob contexto de tensão bélica e luto régio. O velho
rei Hamlet, que derrotou o velho rei Fortimbrás, havia tomado às forças as
terras da Dinamarca, onde passou a viver no castelo de Elsinore, durante a
Idade Média. Um reinado deslegitimo, que fere a ordem, portanto. Certo dia, o
rei Hamlet morre em circunstâncias misteriosas – dizia-se ter sido picado por
uma cobra. Um mês após o falecimento, sua viúva, a rainha Gertrudes, casa-se
com o irmão do falecido, Claudio, que assume o trono. À época, tal matrimônio
era (em alguma medida, até hoje) considerado imoral e até mesmo incestuoso,
revoltando o jovem príncipe Hamlet, filho do falecido rei e de Gertrudes. Ao
mesmo tempo, o jovem filho do derrotado Fortimbrás empreita missão militar rumo
à Elsinore, para tomar de volta a propriedade dinamarquesa.
O primeiro ato se inicia entre os sentinelas de Elsinore, que guardavam
os muros do castelo pela madrugada, até serem surpreendidos pela aparição de um
espectro, um fantasma do velho rei Hamlet. Assustados, os guardas buscam pelo
jovem Hamlet, que se dispõe a acompanhar a próxima vigília noturna. Quando o
momento chega, o espectro pede que o filho o acompanhe, para pavor dos guardas,
que acreditavam poder se tratar de um espírito demoníaco a atrair o príncipe
para uma armadilha. O jovem aceita e segue o fantasma, até ficarem a sós. É
então que o falecido monarca revela as reais circunstâncias de sua morte e
clama por vingança: enquanto cochilava em seus terrenos, fora surpreendido por
Claudio, seu irmão, que sorrateiramente lhe aplicou gotas de veneno no ouvido.
Agonizando, antes de partir para o plano dos mortos, reconheceu seu frio
assassino. Portanto, uma morte repentina, sem dar chance ao rei se redimir de
seus pecados – o que, ao invés de leva-lo ao Paraíso, jogou sua alma no
Purgatório, onde passaria certo tempo sofrendo, “purgando” seus erros. O rei,
assim, só podia visitar a Terra na calada da madrugada, antes do canto matinal
do galo, em forma fantasmagórica.
Nisso,
dá-se o conflito central, que gira a trama da peça. Hamlet, o filho, deverá
vingar o pai? Para confirmar o relato do espectro, o príncipe arma uma peça de
teatro (recurso adorado por Shakespeare). Na peça, que será assistida por toda
a corte, há um fratricídio régio encenado, da exata forma como o fantasma havia
contado. O assassino mata o rei, seu irmão, e toma o trono para si, casando-se
com a rainha. O plano de Hamlet era observar a reação (a manifestação de
possíveis remorsos) de Claudio diante da peça. Para não levantar suspeitas em
relação aos seus reais intuitos, o príncipe passa a se comportar de modo
estranho em público, como se estivesse em desrazão, fora de juízo, louco. O
personagem, então, passa a ter duas camadas de teatralidade: é um personagem
atuando na diegese da história, confundindo os outros personagens. Há certa
zombaria em seu “papel de louco”, dizendo duras verdades à sociedade superficial,
das aparências, e moralmente corrompida, em vários níveis.
Entre os protagonistas,
temos Hamlet, com todo seu conflito e dúvidas existenciais, incutido a matar o
próprio tio; Gertrudes, a mãe e rainha da corte, e Claudio, o tio e rei
usurpador do poder. Há ainda a figura de um velho cortesão, conselheiro do rei,
Polônio, que representa o “mundo das aparências”, da “etiqueta nobre”, onde
devemos responder não àquilo que corresponde à verdade, mas àquilo que os
poderosos querem ouvir. Hamlet passa boa parte da peça tirando sarro de
Polônio. Este, ainda, tem dois filhos: Ofélia, uma bela jovem, interesse
romântico do príncipe protagonista, e Laerte, um jovem habilidoso e impulsivo,
que viaja para a França no começo da história e retorna para Elsinore no clímax,
perto do encerramento. Vale mencionar também Horácio, amigo íntimo de Hamlet,
homem de moral ilibada e forte senso moral, além de Rosencrantz e Guildenstern,
incumbidos por Claudio de investigar o comportamento alterado do sobrinho.
Ofélia (1851-1852), por John Everett Millais.
A peça, incluída
no gênero dramático, pode causar certo estranhamento em leitores menos
afeiçoados ao teatro. A ação se desenrola principalmente em solilóquios e
diálogos, com raríssimas descrições. Para isso, caso seja de interesse do
leitor imaginar os personagens e as ambientações, recomendo as pinturas e
desenhos, feitas muitas vezes por grandes artistas, e adaptações
cinematográficas. O filme de 1948, dirigido e protagonizado pela lenda da
atuação Laurence Olivier, traz uma versão em preto e
branco, resumida, mas muito intensa. A trama do filme ocorre em contexto
medieval e o primor das atuações, fotografia e design de produção
encantam do começo ao fim. Outra adaptação relevante é a de 1996, dirigida e
protagonizada por Kenneth Branagh, que entrega uma versão mais “moderna” e
colorida, além do triunfo de adaptar o texto integral, totalizando mais de
quatro horas de duração.
Hamlet é um dos exemplos mais notáveis de como um clássico pode revelar algo
universal da condição humana e, assim, não desaparecer do imaginário popular,
assumindo novas e variadas interpretações a cada releitura. O centro da
tragédia, aqui, é a dúvida entre ser ou não ser, entre vingar o pai ou
postergar o ato, que pode não necessariamente resultar em benesses. Quais as
consequências de não cumprir o dever imposto pelo fantasma? Hamlet, em diversos
momentos, tem a oportunidade de matar Claudio, mas prefere não executar o ato.
Por exemplo: há um instante onde Claudio está a rezar, ajoelhado, arrependido
de seus atos inescrupulosos – ainda que não o suficiente para deixar o trono e
a rainha, e Hamlet saca sua espada, pronto para findar a vida do tio. Todavia,
mata-lo ali, naquele momento, provavelmente levaria a alma de Claudio para o
Céu, por estar em penitência, enquanto o espírito do rei Hamlet continuaria a
arder no Purgatório, sem ter tido chance de redenção. Valeria a pena, então?
São dúvidas que atormentam o príncipe e o impelem a adiar cada vez mais o pedido
do pai.
A questão é: Hamlet tem escolha. Há, por isso, uma mudança histórica de
paradigma. Diferentemente do mundo medieval, onde se acreditava tudo estar na
ordem divina, é com o homem moderno que nasce o “indivíduo”, este ser dotado de
liberdade, podendo escolher por si seus caminhos. O destino desce dos Céus e
pousa nas mãos do homem. Hamlet deve optar por um caminho e suportar as
consequências de sua escolha. Ele sente “que há algo de podre no reino da
Dinamarca”, que há um desalinho generalizado, uma sociedade estruturalmente
corrompida. Como lidar com isso? Matar o tio, sob ordens de um “fantasma”, de
fato resolveria toda essa desordem? Será que o povo aceitaria a justificativa,
de origem sobrenatural? Talvez matar não seja o caminho, embora sua sede de
vingança clame por isso. Talvez a ordem moral do reino esteja perdida em
âmbitos muito mais profundos e complexos – e o regicídio tenha sido apenas um
sintoma.
“Ser ou não ser: eis
a questão:
Saber se é mais nobre
na mente suportar
As pedradas e flechas
da fortuna atroz
Ou tomar armas contra
as vagas de aflições
E, ao afrontá-las,
dar-lhes fim. Morrer, dormir.
Só isso. E dizer que
com o sono damos fim
À nossa angústia e
aos mil assaltos naturais
Que a carne herdou:
sim, eis uma consumação
Que cumpre
ardentemente ansiar. Morrer, dormir;
Dormir, talvez sonhar
- sim, aí está o entrave:
Pois no sono da morte
os sonhos que virão,
Depois de repudiado o
vórtice mortal,
Nos forçam a
refletir. E é bem esse reparo
Que dá à calamidade
uma vida tão longa.
Pois quem suportaria
o açoite e o esgar do mundo,
A afronta do opressor
e o insulto do soberbo,
O baque do amor
ferido, o lento da lei
A insolência do mando
e este bruto achincalhe
Que o mérito paciente
recebe do inepto,
Se pudesse ele próprio
quitar sua quietude
Com um reles punhal.
Quem suportaria fardos,
Gemendo e suando numa
vida de fadigas,
Senão porque o terror
ante algo após a morte,
A terra ignota de
cujos confins nenhum
Viajante retornou,
nos congela a vontade
E nos força a aguentar
os males que já temos
Em vez de ir pra
outros que desconhecemos.
E assim a consciência
faz todos nós covardes;
E assim a cor nativa
da resolução
Ganha o tom doentio
do pensamento pálido
E empreitadas de
grande vigor e valor,
Com tais ponderações,
suas águas ficam turvas,
E perdem o nome de
ação [...]”
// Hamlet in Ato III, Cena I, verso 56 em diante.
William Shakespeare, com tradução de Lawrence Flores Pereira.
Em seguida, um breve comentário com spoilers:
-
CONTÊM SPOILERS: O
príncipe Hamlet, ao postergar a vingança de matar seu tio e não cumprir o seu
“dever moral”, perante o pai assassinado, acaba abrindo margem para terríveis
infortúnios que culminam em sua própria morte. Ele não mata Claudio de
imediato, imerso em grandes dúvidas entre seguir determinado caminho,
estipulado pelo pai, ou alterar seu destino, entre fazer ou não fazer, ser ou
não ser. Porém, ao hesitar, resulta em matar acidentalmente Polônio, gerando o
desespero de Ofélia, seu amor, que enlouquece de luto e se afoga nas águas de
um rio. Laerte, por sua vez, volta de sua viagem, furioso, e enfrenta Hamlet em
um duelo. Claudio arma um estratagema para envenenar o sobrinho durante a briga
com Laerte, mas é Gertrudes quem, sem querer, acaba tomando o veneno e
morrendo. No fim, Claudio é finalmente morto pelas mãos de Hamlet, que se
entremata no duelo com Laerte. Uma tragédia de grandes proporções, portanto,
causada pela hesitação da vingança. A peça termina com Fortimbrás tomando o
castelo e reassumindo o reino da Dinamarca, legitimando o antigo trono tomado
e, simbolicamente, reorganizando novamente o cosmos.
FONTES: Shakespeare, William. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca.
Tradução, introdução e notas de Lawrence Flores Pereira;
ensaio de T. S. Eliot. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2015.
Filmes: Hamlet, de 1948, e Hamlet, de 1996; O Homem do
Norte (2022).
José Monir Nasser (comentários sobre a obra, no YouTube).
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