Resenha de:
A TEMPESTADE
ESCRITO POR
WILLIAM SHAKESPEARE
29 de março de 2020
Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia
Miranda - The Tempest (1916), por John William
Waterhouse.
Escrita em 1611, com atualização (para apresentação em um casamento) em 1613, a comédia A Tempestade se trata da última peça teatral composta por William Shakespeare, poeta inglês, que veio a se aposentar das artes – e falecer – logo em seguida. A obra conta a história de Próspero, e sua filha Miranda, de reencontro aos seus antigos traidores. Nela, os personagens estão dentro de uma atmosfera única, onde a linguagem floresce inspirada em monólogos e diálogos. É um universo perfumado com a poesia shakespeariana, não o mundo real e cru. Na primeira cena, somos levados para dentro de um navio, em meio às tormentas dos mares e dos céus; em seguida, até o fim, a peça se passa em uma ilha, onde habitam a magia e os espíritos da natureza. Diria que tal ilha está situada no mundo da poesia, onde não há fronteira para a fantasia.
No que concerne ao
autor, Shakespeare, estamos falando do mais influente dramaturgo de todos os
tempos. E do maior poeta britânico. Nascido em 1564 e morto em 1616, tendo
vivido, portanto, boa parte da vida no chamado período elisabetano, o “bardo”
escreveu sonetos, poemas e peças – que se dividem em três grandes grupos:
dramas históricos, comédias e tragédias. Algumas de suas comédias mais célebres
são Sonho de uma Noite de Verão (1594) e A Tempestade (1611);
entre as tragédias, destaco Romeu e Julieta (1592), Hamlet (1599)
e Macbeth (1606).
Um ponto que merece ser lembrado é a
questão da tradução. Como coloca Aline Aimée, há traduções mais “estrangeirizadoras”
(onde o tradutor busca, na medida do possível, preservar o estilo e a época do
autor – podendo se valer de termos arcaicos, por exemplo, para espelhar a
distância histórica do original) e traduções mais “domesticadoras” (na qual o
tradutor busca facilitar a compreensão do texto visando o público da nossa
própria época).¹ Ou seja, o espectro da versão traduzida compreende todo o
espaço que há entre a fidelidade e uma certa democratização do texto. Quanto
mais fiel, se antigo, a tendência é que seja mais difícil, denso, arcaico;
quanto mais democrático, mais popular, simples, de fácil entendimento. Cabe ao
leitor escolher. A tradução de A Tempestade, pela qual me vali para
escrever a atual resenha, é de Carlos Alberto Nunes e situa-se entre as versões
de gênero “estrangeirizador”.
Shakespeare, na presente peça, apresenta-nos
a comitiva do rei de Nápoles, Alonso, a bordo de um navio. Os nobres e
marinheiros sofrem a fúria de uma tempestade, que acaba por naufragar a
embarcação e levar seus tripulantes à uma ilha misteriosa. Sabemos, logo de
início, que o causador da tormenta é Próspero, um mago que habita o local. Após
isso, a peça se divide em pelo menos três núcleos, que conheceremos melhor
adiante.
No núcleo principal, temos o já citado
mago Próspero. Antigamente, ele era o legítimo duque de Milão. Porém, ao
dedicar-se mais aos estudos da magia que exercer o poder, permitiu que seu
irmão, Antônio, cobiçoso, traísse sua confiança e lhe usurpasse o cargo.
Antônio, assim, tornou-se duque de Milão e mandou expulsar Próspero da cidade.
O bruxo, que tinha uma filhinha, foi colocado em um barco, por Gonzalo, um
velho conselheiro de alma nobre, com mantimentos, livros e vestes. Próspero,
então, foi parar na ilha da trama. Junto dele, vive Miranda, filha crescida,
que não conhece o “mundo civilizado” e guarda sonhos ternos e românticos em seu
coração. Há também Ariel, um espírito que vive na ilha. Certa vez, uma bruxa
enfeitiçou Ariel, prendendo-o no tronco de uma árvore. Próspero, ao chegar à
ilha, percebeu o espírito preso, que gemia, e o libertou, com a condição de
servi-lo por um tempo. Deste modo, na peça, Ariel – com seus poderes mágicos –
cumpre as ordens do mago, provocando inclusive a tempestade do início da trama.
O espírito pode se transformar em ninfa, em harpia, ficar invisível etc., além
de seus talentos musicais. O último personagem pertencente ao núcleo principal
é Ferdinando, filho do rei de Nápoles, que se perde, sozinho, na ilha e
encontra Miranda, por quem se apaixona perdidamente inaugurando o arco amoroso
da história.
Em outra parte da ilha, temos toda a comitiva
do rei napolitano, Alonso. Além do monarca, destaco Gonzalo, o senhor de alma
bondosa que ajudara Próspero em Milão; Antônio, irmão e traidor de Próspero,
usurpador do ducado milanês; e Sebastião, irmão de Alonso. Neste núcleo, temos
alguns dos arcos mais dramáticos, onde o espírito de traição e perversidade
ronda entre os nobres. A exceção, por certo, é Gonzalo.
O terceiro núcleo se dá com três
personagens. O primeiro é Calibã, escravo de Próspero e filho da bruxa que
prendera Arial ao tronco. Calibã possui uma aparência grotesca, píscea, e adora
esbravejar maldições contra Próspero. Ele pode simbolizar a opinião de
Shakespeare sobre os nativos americanos – uma visão pejorativa que se explica
pelo espírito preconceituoso da época. Fora Calibã, temos dois náufragos da
embarcação do rei: Estéfano, sommelier bêbado, e Trínculo, bufão.
Calibã, encantado pelo vinho de Estéfano, vê nele um novo senhor, além de tramar
um plano para matar Próspero e tirar dele o poder da ilha. Os três, juntos,
protagonizam as cenas mais cômicas de toda a história.
Calibã (à esquerda), Estéfano (ao centro) e
Trínculo (à direita), por Johann Heinrich Ramberg.
Creio que muitos poderão se divertir com as falas e situações bizarras que ocorrem na ilha. Outros, a depender do tradutor, podem sentir dificuldades com alguns termos arcaicos. Devido seu estilo dramatúrgico, são poucas as descrições de cenários e personagens, por isso, caso o leitor não esteja acostumado ao gênero, sugiro um complemento, seja por meio de pinturas e filmes, para poder imaginar e, assim, imergir na trama de forma mais satisfatória. O ideal, por certo, seria assistir uma encenação da obra, visto que ela foi feita nesse intuito. Temos cenas de romance, drama, comédia e fantasia. Todas com a qualidade da poesia do autor, que coloca verdadeiros poemas na boca de cada uma de suas criações. É da boca de Miranda que sai as palavras “admirável mundo novo”, que dá nome ao clássico de Aldous Huxley, escrito em 1932. Porém, a fala mais célebre, do grau mais elevado do talento shakespeariano, está na boca de Próspero, após belos espíritos, evocados por ele, se dissolverem no ar: “[...] tal como o grosseiro substrato desta vista, as torres que se elevam para as nuvens, os palácios altivos, as igrejas majestosas, o próprio globo imenso, com tudo o que contém, hão de sumir-se, como se deu com essa visão tênue, sem deixarem vestígio. Somos feitos da matéria dos sonhos, nossa vida pequenina é cercada pelo sono [...]”. É o trecho mais clássico da obra, que sobrevive até hoje, mesmo após tantos séculos. Sim, somos feitos da matéria dos sonhos e, talvez, por isso nos identificamos tanto com a poesia da peça. Assim como a fantasia, nossos sonhos odeiam limites. Sonhos adoram voar, reproduzir-se em formas cada vez mais íntimas de nosso âmago, onde habitam os medos, os desejos, os valores. Essa substância é a condição de possibilidade para a arte e tudo o que nos caracteriza enquanto seres humanos. É onde estão nossas contradições e todo tipo de projeção.
Para explicar de modo filosófico essa beleza, trago Byung-Chul Han²: “Deus escurece, diz Agostinho, a Sagrada Escritura de propósito com metáforas, com o “manto figurativo” para torna-la objeto da cobiça. A vestimenta bela como metáfora erotiza a escrita”. Em paralelo, vejo o mesmo com A Tempestade de Shakespeare. Ao invés de se valer de frases cotidianas ditas de forma cotidiana, o poeta envolve o texto com um véu, que obnubila o sentido imediato, levando o nosso entendimento por caminhos pouco convencionais, onde a carga de sentido cria uma árvore florida de interpretações. Dependendo do leitor, o belo da escrita pode arrebata-lo. Basta que se permita navegar.Em seguida, um breve comentário
com spoilers:
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CONTÊM SPOILERS: Embora a
obra pareça uma trama de vingança, há quem interprete os atos zombeteiros de
Próspero, aliado à Ariel, como atos de justiça. O início da peça, como a
tempestade do primeiro ato, está em desordem. A legitimidade do ducado de Milão
está corrompida, portanto, a moral está desvairada. Desde o naufrágio até os
perrengues dos nobres, tudo, de certa forma, serviu como um purgatório dos
demônios do passado. Próspero fez o que fez em busca da restauração da ordem –
para enfim abandonar a mágica e morrer em paz (assim como o próprio
Shakespeare, que abandonou a magia das palavras para, enfim, descansar). É um final
dos mais alegres, onde cada personagem é redimido e perdoado. No lugar da
condenação, há o perdão e a limpeza de consciência. Outro simbolismo, como
destaca o professor José Monir Nasser, é a reconciliação entre Céu e Terra (ou
entre o divino e o humano) que se ilustra por meio do casamento de Miranda,
pura como os anjos, e Ferdinando, herdeiro dos nobres, na Terra
FONTES: ¹ Traduções de Shakespeare – Peças (Canal Aline Aimee no YouTube).
² HAN, Byung-Chul. A Salvação do Belo. Tradução de Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019, p. 46.
SHAKESPEARE, William. A Tempestade. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora Martin Claret, 2011.
José Monir Nasser (comentários sobre a obra, no YouTube).
FONTES: ¹ Traduções de Shakespeare – Peças (Canal Aline Aimee no YouTube).
² HAN, Byung-Chul. A Salvação do Belo. Tradução de Gabriel Salvi Philipson. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019, p. 46.
SHAKESPEARE, William. A Tempestade. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora Martin Claret, 2011.
José Monir Nasser (comentários sobre a obra, no YouTube).
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