Análise e comentários:
FILMOGRAFIA DE WALTER SALLES
21
de dezembro de 2024
Atualizado em 4 de março de 2025
Douglas Jefferson, bacharel em Filosofia
foto: Miranda Filho,
Divulgação/FIAFF
Nascido em 1956, no Rio de Janeiro, e filho de ricos banqueiros/embaixadores, Salles vem acumulando prestígio cinematográfico, com premiadíssima carreira. Em 2025, venceu o primeiro Oscar da História do Cinema Brasileiro, com Ainda Estou Aqui (2024), na categoria Melhor Filme Internacional. Estudou Economia e se formou em comunicação audiovisual, além de ser poliglota (tendo dirigido filmes em pelo menos três idiomas) e praticar automobilismo. Parceiro de longa data da cineasta Daniela Thomas, com quem codirigiu três longas, dedica-se sobretudo a expor, em suas lentes, os problemas sociais causados pela desigualdade social do continente americano.
Seus trabalhos costumeiramente se
ambientam em contextos históricos específicos, como a Ditadura Militar
Brasileira, o Confisco das Poupanças, na Era Collor, e a virada do último
milênio. Ele tem predileção por filmar longas viagens, pelo Brasil, América
Latina e Estados Unidos, detalhando as culturas de cada região em sua respectiva
época. Nisso, pessoas reais acabam se tornando parte elementar dos filmes, como
figurantes, auxiliando no extremo realismo. Outro ponto marcante é a questão econômica,
colocada como empecilho para as famílias-protagonistas poderem usufruir de uma
vida mais digna. Aparecem, ainda, os temas da memória, como diários, escolhas e
consequências, bem como o resultado da ausência dos pais na vida dos filhos.
Também é comum a ênfase em personagens crianças, cheias de sonhos e medos.
Além da supracitada Daniela Thomas,
Salles tem firmado colaborações significativas (e históricas) com as atrizes
Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, além do compositor Antonio Pinto, que
traz sempre alento às cenas de seus filmes. Tecnicamente, o diretor prima pela
qualidade, primeiramente já na escolha e elaboração dos roteiros de cada
projeto, desenvolvendo temas sensíveis às realidades para onde os trabalhos
estão voltados.
A seguir, acompanhe meu comentário acerca
de cada um de seus longas.
Exposure (1991) | A Grande Arte
Nota pessoal: 5,2 (regular)
Rotten Tomatoes: - | IMDb: 6,1/10 | Metacritic: - |
Filmow: 2.8/5
Comentário:
Após o assassinato de Gisela, uma prostituta do Rio de Janeiro, um fotógrafo
norte-americano, amigo da vítima, aprende a arte de manusear facas, com o
enigmático Hermes, para enfim buscar vingança. No início, lemos um verso do
poeta grego arcaico Arquíloco, que descreve bem o intuito do protagonista:
“Tenho uma grande arte: firo cruelmente aqueles que me ferem”. Falado
majoritariamente em inglês, o primeiro longa ficcional de Salles se baseia em
romance homônimo de Rubem Fonseca, com uma complexa trama envolvendo mortes,
suspense e mistério. Há boas reviravoltas. E a fotografia, com suas tomadas
caprichadas, demonstra o alto valor da produção. Porém, há muitos pontos
negativos: as atuações são ruins, com exceção do consagrado Raul Cortez e da carismática
Giulia Gam, no papel de Gisela; a edição não passa o ritmo adequado e a trilha
sonora soa datada, enjoativa e deslocada.
O Primeiro Dia (1998)
“codireção de Daniela Thomas”
Nota pessoal: 6,9 (bom)
Rotten Tomatoes: - | IMDb: 6,8/10 | Metacritic: X% |
Filmow: 3.3/5
Comentário: No desfecho do milênio, em 1999, dois
destinos completamente diversos se cruzam – o de uma jovem professora caída em
depressão, após ser abandonada pelo parceiro amoroso; e o de um fugitivo
penitenciário, que é incumbido de matar um amigo, em troca de sua liberdade.
Com roteiro intrincado e tramas paralelas, o drama ostenta grandes atuações,
como de Fernanda Torres, vivendo a professora Maria, e Mateus Nachtergaele, no
papel de Francisco, o malandro marcado para morrer. Este detém a melhor sequência
do filme, quando o fugitivo finalmente o encontra, iniciando um diálogo (muito
mais puxado para um monólogo) em que a consciência da morte desencadeia reações
inesperadas. O texto é brilhante. Para aludir ao tempo que passa, vemos, em
letreiros, a aproximação do Ano-Novo, além de ouvirmos o som dos ponteiros de
um relógio. Há uma espécie de crença no renascimento a partir da virada do
milênio, como uma promessa de apagamento das cicatrizes do passado. Poder
começar de novo, do zero, apesar de uma ilusão, inspira os personagens. Outro
tema central é o de nossas escolhas, cada uma a gerar consequências
inimagináveis, podendo mesmo ocasionar um “milagre momentâneo”, que brilha
intensamente como os fogos de artifício, mas se esvaem em fumaça logo depois.
On the Road (2012) | Na Estrada
Nota pessoal: 7,2 (muito bom)
Rotten Tomatoes:
46% | IMDb: 6/10 | Metacritic: 56% | Filmow: 3.3/5
Comentário: Um escritor aspirante, após a morte de seu
pai, conhece um charmoso e devasso jovem, Dean Moriarty, com quem trava intensa
amizade. Juntos, os dois viajam longamente pelo solo norte-americano, movidos
por sexo, drogas, blues e jazz. Baseado em obra homônima, de Jack
Kerouac, o road movie ostenta um elenco brilhante de coadjuvantes, que
aparecem e desaparecem de tela constantemente, durante as aventuras da dupla de
amigos. Ambientado nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, o filme nos
imerge em cenários típicos da época, nos Estados Unidos, com a cultura
efervescente dos jovens a aproveitar os prazeres da vida, após anos bélicos e
sombrios. Fala-se, sobretudo, de liberdade: as escolhas que fazemos, na
juventude, os caminhos e estradas que tomamos, os amores que encontramos – e a
volta para casa. Por um lado, há o hedonístico carpe diem, movendo os
personagens pelo país, na busca pelo prazer; por outro lado, as obrigações da
vida adulta e o amadurecimento, sempre adiado. Sem um clímax convencional,
Walter Salles nos mostra horizontes de possibilidades, com êxtases festivos
intercalados por separações e conflitos. É como ler o velho diário de memórias
de um cosmopolita, em um tempo sem rédeas para a moral e suas consequências.
Dark Water (2005) | Água Negra
Nota pessoal: 7,6 (muito bom)
Rotten Tomatoes:
47% | IMDb: 5,6/10 | Metacritic: 52% | Filmow: 2.7/5
Comentário: Durante um conturbado divórcio, uma mãe e
sua filha se mudam para um apartamento velho e barato, onde infiltrações de
água são tão comuns quanto os mistérios que rondam o lugar. Trata-se de uma
refilmagem de um filme japonês de 2002, que se baseia em um conto de Koji Suzuki, mesmo autor do jovem clássico do
terror O Chamado, com muitas semelhanças entre uma história e outra. É o
único filme de terror de Walter Salles, e o mais próximo dos padrões de
Hollywood, inclusive no elenco, com Jennifer Connelly protagonizando, em
excelente performance. A fotografia, de Affonso Beato, é muito caprichosa, com
chuvas torrenciais quase ininterruptas e abundância da coloração verde, dando
um aspecto melancólico, sombrio e carregado, como um espelho do psicológico da
personagem principal. O enigma se faz logo de início, quando Ceci, a filha,
começa a ter contato com uma “amiga imaginária” intrigante. Logo, vamos
descobrindo novas peças da trama, como o apartamento do andar acima,
constantemente alagado, e o sumiço de seus moradores anteriores. Tudo parece
interligado, por alguma razão, pela água do prédio. Outro ponto de interesse na
narrativa são os efeitos psíquicos gerados em filhos de pais problemáticos,
podendo ecoar traumas pelo resto de suas vidas.
Linha de Passe (2008)
“codireção de Daniela Thomas”
Nota pessoal: 8,6 (ótimo)
Rotten Tomatoes: 77% | IMDb: 7,1/10 | Metacritic: - |
Filmow: 3.7/5
Comentário: Cleuza é uma empregada doméstica
corintiana, grávida, da periferia da cidade de São Paulo, que cuida sozinha de
quatro filhos: um aspirante a jogador profissional de futebol, um frentista
evangélico, um motoboy e um garotinho mulato. Dividido em capítulos por meses,
o longa desenvolve uma subtrama para a mãe e para cada um de seus filhos, que
carregam seus ressentimentos, sonhos, amores e ódios. Extremamente realista, em
ambientação ou mesmo palavreado, com gírias e sotaques da periferia paulistana,
os problemas endêmicos das famílias de baixa classe econômica são evidenciados,
demostrando em tela as consequências (psicológicas e sociais) da manutenção da
miséria, que passa de geração para geração, sem abrir grandes possibilidades de
ascensão e tendendo ao desemprego e até à criminalidade. Essa “linha de passe”,
como metáfora do futebol, central na trama, deseja que o próximo marque o gol –
para assim se redimir das próprias incumbências socialmente designadas. Além da
ótica futebolística, a religião também aparece como suporte emocional, um meio
de suportar os pesares da vida, mas suas contradições vão se tornando cada vez
mais incômodas.
Diarios de Motocicleta (2004) | Diários de Motocicleta
Nota pessoal: 8,9 (ótimo)
Rotten Tomatoes: 83% | IMDb: 7,7/10 | Metacritic: 75%
| Filmow: 3.9/5
Comentário: Em 1952, os argentinos Ernesto Guevara,
então estudante de medicina, e seu amigo Alberto Granado, bioquímico, decidem
viajar pelo continente sul-americano, em uma motocicleta, buscando aventura;
mas acabam por encontrar a escancarada pobreza dos povos latinos. Falado em
espanhol e iniciado na Argentina, o longa expande horizontes até o Chile e se
demora longamente em terras e águas peruanas, mostrando as culturas e as
pessoas reais de cada região. O jovem Che Guevara, antes da luta armada e da revolução,
sente uma crescente solidariedade pelo sofrimento humano, em especial pelos
mineiros de um deserto chileno e pela colônia de leprosos, na Amazônia. A moto,
como o título falsamente sugere, aparece pouco, pois quebra em poucos meses,
forçando os viajantes a seguirem a pé; porém, os diários de Ernesto continuam
até o fim, servindo posteriormente de base para o próprio roteiro do filme. A
cena mais simbólica acontece quando nosso protagonista, em seu aniversário,
decide atravessar, a nado, um rio amazônico, que separa as colônias dos sãos e
dos doentes, para estar junto dos leprosos – isto é, escolhendo estar ao lado
dos excluídos/marginalizados, ainda que isto possa lhe custar a própria vida,
tendo em vista que Che era asmático e a travessia tenderia a desencadear suas
crises respiratórias.
Abril Despedaçado (2001)
Nota pessoal: 9,2 (excelente)
Rotten Tomatoes:
74% | IMDb: 7,6/10 | Metacritic: 73% | Filmow: 4.2/5
Comentário: No sertão brasileiro de 1910, uma antiga
rixa entre duas famílias resulta em uma série de mortes. Quando o sangue da
roupa do último membro morto começa a “amarelar”, após vários dias no varal,
encerra-se a trégua e se inicia novo ciclo de vingança e retaliação, com uma
contagem regressiva até o próximo assassinato. Inspirado em romance homônimo do
escritor albanês Ismail Kadare, começamos a história com um menino sem nome,
batizado informalmente como Pacu, que vive com dois irmãos mais velhos e seus
pais, pobres produtores de rapadura, em uma terra extremamente árida, sob Sol
escaldante. Há muitos paralelos com o gênero de faroeste, mas no contexto
brasileiro. É uma sociedade sem leis, sem a presença do Estado, onde cada crime
é respondido dentro de códigos religiosos e crenças culturais severas. Para
escapar do vazio, uma gota de arte é o suficiente para encandecer a imaginação
do menino, que ganha um livro de uma bela jovem circense e escapa da monotonia.
Como diz o menino, para seu irmão do meio, interpretado por Rodrigo Santoro: “A
gente é que nem os boi. Roda, roda e não sai do lugar”, em alusão à
completa estagnação econômica e social da família, criando um desejo de
“quebrar a roda”, sair para o mundo e viver o amor e a aventura, antes que a
morte (cedo ou tarde) chegue.
Terra Estrangeira (1995)
“codireção de Daniela Thomas”
Nota pessoal: 9,4 (excelente)
Rotten Tomatoes: - | IMDb: 7,4/10 | Metacritic: - |
Filmow: 4.1/5
Comentário: Durante o confisco das poupanças, na Era
Collor, Paco perde repentinamente sua mãe. Sem dinheiro, aceita entregar uma
encomenda misteriosa em Portugal, onde vivem Alex, uma garçonete brasileira, e
Miguel, seu namorado músico, usuários de drogas e contrabandista. Com magnífica
fotografia em preto-e-branco, causando um sentimento devastador e angustiante,
como se o Universo e especialmente a sociedade fossem indiferentes às dores
humanas, o longa arquiteta uma trama existencialista, com o protagonista
perdido em si, sem saber para onde ir. A sequência da morte de sua mãe,
interpretada por Laura Cardoso, que recebe, pela televisão, a notícia do
bloqueio de seus bens de poupança, é aterrorizante, como se os últimos
vestígios dos sonhos da idosa estivessem desmoronando e morrendo. O mundo, no
filme, é sombrio e extremamente perigoso. Em quem podemos confiar? Viajar para
outro continente, bem longe das sombras do passado, parece de início uma boa
solução, mas a solidão persegue Paco, que segue em constante inadequação, como
se não pertencesse a lugar algum. Quando ele e Alex, duas almas igualmente
perdidas, encontram-se em terras portuguesas, um pequeno lume se acende – e
toda aquela realidade parece um pouco mais tolerável.
Ainda Estou Aqui (2024)
Nota pessoal: 9,8 (excelente)
Rotten Tomatoes:
89% | IMDb: 8,9/10 | Metacritic: 79% | Filmow: 4.6/5
Oscar: Melhor Filme Internacional.
Comentário: No auge repressivo da Ditadura Militar
Brasileira, em 1971, o ex-deputado de esquerda, Rubens Paiva, é levado para
depor, pelos militares – e desaparece. Sua esposa, a ativista Eunice Paiva,
tenta continuar a vida (sua e de seus filhos), nos longos anos que se sucedem
ao desaparecimento, sempre em busca de Justiça. Baseado em romance
autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens, trata-se de
um filme-evento do cinema nacional, com grande impacto e repercussão de público
e crítica. É o tipo de obra que eterniza, principalmente às gerações vindouras,
a memória sombria de um evento que deve, ano a ano, ser relembrado, para que
não se repita – tal como A Lista de Schindler (1993). Na primeira parte
do longa, somos mergulhados no Rio de Janeiro dos anos de chumbo, com o
contraste entre a dura repressão política e a vida familiar, em pleno viço e
felicidade, de Eunice. Aqui, tudo é muito verossímil: as casas, os móveis, os carros,
as roupas, até mesmo o telejornal, narrado por Cid Moreira, tudo nos transporta
àqueles anos, onde as crianças esbanjavam inocência e os adultos temiam os
rumos do país. Quando Rubens desaparece, há uma cisão na trama, que perde a
atmosfera áurea e assume um tom angustiante, com a falta de respostas e a
dissimulação dos responsáveis. Destaque para Fernanda Torres, na pele de
Eunice, a transmitir, com pleno realismo, as batalhas internas e jurídicas da
personagem; e Fernanda Montenegro, que a substitui na terceira idade,
entregando (sem dizer uma única palavra) todo o peso acumulado pelo silêncio.
Central do Brasil (1998)
ota pessoal: 10 (perfeito)
Rotten Tomatoes:
94% | IMDb: 8/10 | Metacritic: 80% | Filmow: 4.1/5
Comentário: Dora é uma professora aposentada que, para
aumentar a renda, trabalha escrevendo cartas (e, quando quer, enviando-as) para
os transeuntes da estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Sua vida muda
quando conhece o garotinho Josué, que perde a mãe e se vê completamente sozinho
no mundo. A obra-prima de Salles é um marco do cinema nacional, com diversos
prêmios internacionais e duas indicações ao Oscar, incluindo Melhor Atriz para
Fernanda Montenegro, feito então inédito para uma brasileira. Com belíssima e
icônica trilha sonora, especialmente o tema ao piano, o longa ostenta perfeição
em cada tomada de fotografia, roteiro e performance. É uma jornada (física e
espiritual) dolorosa, em que Dora, ao decidir ajudar o garoto, levando-o até a
casa de seu pai, no Nordeste, transforma-se substancialmente, revendo seus
valores. A vida, então, transborda sentido – e o vazio do cotidiano cede espaço
para um único bem supremo: reverter o destino trágico do garoto, colocando-o
nos trilhos da vida. Uma única vida inocente salva, como revelam o pranto e o
riso, valida (e mesmo sacraliza) os insistentes obstáculos percorridos, ainda
que não haja nenhum “benefício capitalista” na empreitada, por assim dizer. No
fim, resta apenas a memória – e, com ela, a certeza de ter feito
verdadeiramente o bem no mundo.
Filmografia
completa do diretor:
2024
– Ainda Estou Aqui
2011 – On the Road (Na
Estrada)
2008
– Linha de Passe *codireção de Daniela Thomas
2006
– Paris, Je t’aime (Paris, Eu te Amo) *vários diretores
2005 – Dark Water (Água
Negra)
2004
– Diarios de Motocicleta (Diários de Motocicleta)
2001
– Abril Despedaçado
1998
– O Primeiro Dia *codireção de Daniela Thomas
1998
– Central do Brasil
1995
– Terra Estrangeira *codireção de Daniela Thomas
1991
– Exposure (A Grande Arte)
FONTES: todos os filmes
acima, em negrito; Wikipédia; Rotten Tomatoes; IMDb; Metacritic e Filmow.
Atualizações: Oscar de Melhor Filme Internacional, para Ainda Estou Aqui (2024).
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